ISSN: 2526-849X



A cruel pedagogia do vírus


The cruel pedagogy of the virus


La cruel pedagogía del virus



Maria Aparecida Mendes dos Santos1



SANTOS, Boaventura de Souza. A CRUEL PEDAGOGIA DO VÍRUS. Grupo Almedina: Coimbra – PT, maio de 2020, livro, 32 p.


Boaventura de Sousa Santos, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison, Global Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça.

Em abril de 2020 no contexto da pandemia de COVID-19, publica pela editora Almedina em Portugal, seu livro: “A Cruel Pedagogia do Vírus”, composto por 5 capítulos destinados à reflexão acerca da sociedade contemporânea assolada pela “pandemia” mundial.

O autor inicia cada parágrafo dos cinco capítulos com uma breve frase, um tanto provocativa, que encerra os conceitos de “zona de invisibilidade”, “três unicórnios”, “sul” e “pedagogia do vírus” de que irá tratar no decorrer dos cinco capítulos da sua obra. Afirma inicialmente que, há uma crise permanente desde meados do fim do século passado que, configuradas pelo ideal capitalista e neoliberalista, impossibilitaram políticas sociais que pudessem servir de proteção aos efeitos da pandemia atual. Procura, o autor, sinalizar o egoísmo e a imoralidade contida atrás do discurso sobre o “ficar em casa” que parece confortável às camadas sociais elevadas, mas não é aplicável à população em vulnerabilidade social que há nos vários continentes nas “zonas de invisibilidade”, como cita o autor.

Há uma crítica sobre o sistema social e econômico capitalista que tendo condicionado as sociedades a viverem freneticamente pelo trabalho e pelo consumo, agora consegue se flexibilizar desacelerando-se e permitindo tempo livre com a família e para a leitura, etc. Boaventura de Sousa Santos aponta então o impedimento que o sistema impunha sobre a possibilidade de ações políticas que pudessem ponderar a inflexibilidade da rotina exaustiva do sistema, mas que agora pela crise da pandemia, surgem por imposição. Para completar o cenário que descreveu, não deixou de tomar nota sobre o impacto ambiental da recessão das atividades e a competição política e econômica entre China e Estados Unidos.

O autor faz uma crítica ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado. O vírus teria deixado transparecer as fragilidades do sistema social e apontado para a fraqueza política de só saber falar em nome do mercado. A Política e a Intelectualidade não servem mais ao humano, fica claro este posicionamento do autor.

Se a política serve ao mercado, os intelectuais por sua vez não conseguem se comunicar com a classe oprimida, além disso, nem se quer conseguem teorizar precisamente sobre a realidade abruptamente instaurada sob o domínio da pandemia. Tendo o sistema aparentemente se fragilizado, ocorre, no entanto, uma fortificação daqueles “três unicórnios” citados acima, como a eles se referiu o autor. O capitalismo está mascarado sob a forma do comunismo chinês, o colonialismo impera sob a forma de imperialismo, uma dependência das nações sob outras, e o patriarcado, aparentemente diminuído pelas conquistas dos movimentos feministas, está acirrado no aumento da violência doméstica e do feminicídio, por exemplo.

Boaventura coloca que, há uma relação de grupos vulneráveis que sofrerão com a pandemia e também com as medidas governamentais de prevenção: Mulheres estão sob os riscos que o isolamento proporciona à medida que favorece a violência doméstica, bem como, representam a maior parte dos que trabalham na linha de frente sob os cargos relacionados ao atendimento médico, são elas também que possuem funções importantes no cuidado da família e poderão estar se expondo mais aos riscos de contágio na pandemia. Trabalhadores autônomos, dentre esses os empregados informais e os de trabalho precário e os que trabalham especificamente na rua; a população de rua; moradores das periferias; refugiados e imigrantes, dentre esses os que estão em campos de internamento; deficientes e idosos formam assim uma lista de bilhões de pessoas suscetíveis aos riscos neste momento.

Considerando os países subdesenvolvidos e emergentes principalmente do hemisfério Sul, faz o autor atribuir um conceito metageográfico a esse substantivo: “Sul” representaria uma determinada qualidade social e econômica, mais do que meramente espacial. Citando números que nos dão uma dimensão da quantidade de pessoas em tais condições, o autor expõe vários aspectos das situações em que aqueles grupos estão envolvidos, desde a falta de água e saneamento, às diversas limitações do dia-a-dia e revela inapropriadas a esta população as orientações da própria Organização Mundial da Saúde. Faz ainda uma reflexão sobre como a quarentena já era uma realidade para alguns desses grupos, no que estariam vendo agora uma espécie de justiça social. A pandemia revelou escandalosamente essa sub-realidade aos olhos de todos e ainda poderá agravá-la.

A crise suscita mobilização política e há, como defende o autor, duas formas de crise, uma que age de forma lenta e atinge proporções gigantescas, mas que são ignoradas pela forma paulatina que vai avançando (haja vista à crise ecológica que ameaça a vida no planeta por causa da atividade industrial e econômica) e outra, como a do Corona vírus, que impactam repentinamente e por isso ganham mais atenção; esta seria a primeira das seis lições que nos rende a “pedagogia do vírus”, revela o autor. O enfraquecimento do Estado pelo sistema capitalista e o ideal neoliberal que impossibilitam a assistência social necessária; a maior sujeição das populações vulneráveis; o descrédito do posicionamento da extrema-direita e a insurgência do colonialismo e do patriarcado nos períodos de crise foram as primeiras lições que nos deram a pandemia.

O autor faz uma excelente crítica sobre o sistema político e econômico e aponta para as possíveis consequências pós-pandemia, está previsto nele o agravamento do desmonte das instituições públicas, bem como o do serviço público, ameaçados em consequência do endividamento dos estados que agora precisaram tomar atitudes assistencialistas repentinamente. Finalmente nos indaga se essas lições realmente serão aprendidas.

A obra traz alguns pontos importantes: a quarentena sugeriu a possibilidade de haver reflexão sobre o sistema vigente; é necessária a desarticulação do sistema capitalista; é necessário um respeito à natureza, às outras espécies (dentre às quais somos uma minoria, aponta o autor com números percentuais) e uma coadunação entre processos políticos e processos civilizatórios (que teriam se separados com a queda do muro de Berlim e fortalecido o capitalismo voraz, como defende o autor).

Fica claro, pelas argumentações do autor de que a pandemia é consequência do sistema socioeconômico vigente e pode haver outras pelo mesmo motivo, porém, faço uma crítica particular de que a atual pandemia mais tem sua origem numa questão cultural e biológica já explicável por alguns cientistas da área que, por exemplo, argumentam o primeiro possível contato humano com o vírus da atual pandemia através do morcego, muito provavelmente a partir dos hábitos alimentares do Sul da China, ou seja, um caso isolado e não necessariamente consequente do capitalismo e da ameaça que ele traz à vida no planeta. Conclui o autor brilhantemente: Estivemos nos últimos quarenta anos em uma “quarentena política, cultural e ideológica (...) quando superarmos esta quarentena, estaremos mais livres das quarentenas provocadas por pandemias”.



Recebido em: março/2022.

Aprovado em: abril/2022.

1 Programa de Pós-graduação em Gestão e Práticas Educacionais, PROGEPE (UNINOVE) Email: aparecia_mendes@uni9.edu.br




Revista Devir Educação, Lavras, vol.6, n.1, e-561, 2022.

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