ISSN: 2526-849X




História local no ensino de história: uma experiência didática

Local history in history teaching: a didactic experience

La historia local en la enseñanza de la historia: una experiencia didáctica


Kellen Cristina Batista1

Alex Carbonel Pereira2 


Resumo


Este trabalho apresenta uma experiência didática realizada com estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual “Lourenço Peruchi”. Como centralidade dessa experiência, analisamos uma fotografia da Avenida São Paulo, do município de São José dos Quatro Marcos-MT no ano de 1980. Esta atividade proporcionou um conhecimento significativo para os alunos, contemplando o currículo proposto no livro didático com elementos da história local. Problematizamos como ações do governo federal influenciaram o cotidiano da população de um município em formação do interior do estado de Mato Grosso e como tais ações contribuíram para o povoamento do município. Percebemos que, ao trabalhar com a fotografia da principal avenida do município, provocamos uma condição de pertencimento e inserção histórica nos alunos. Constatamos que com poucos recursos é possível realizar uma aula que contemple de forma significativa o currículo proposto.

Palavras-chave: Fotografia; História; Ensino.


Abstract


This work presents a didactic experience carried out with students from the 9th year of Ensino Fundamental da Escola Estadual “Lourenço Peruchi”. As the centrality of this experience, we analyzed a photograph of Avenida São Paulo, in the municipality of São José dos Quatro Marcos-MT in the year 1980. This activity provided significant knowledge for the students, contemplating the curriculum proposed in the textbook with elements of local history. We problematize how actions of the federal government influenced the daily life of the population of a municipality in formation in the interior of the state of Mato Grosso and how such actions contributed to the population of the municipality. We realized that, when working with the photograph of the main avenue of the city, we provoke a condition of belonging and historical insertion in the students. We found that with few resources it is possible to carry out a class that significantly contemplates the proposed curriculum.

Keywords: Photography; Story; Teaching.


Resumen


Este trabajo presenta una experiencia didáctica llevada a cabo con alumnos del 9º do Ensino Fundamental de la Escuela Estadual "Lourenço Peruchi". Como centralidad de esta experiencia, analizamos una fotografía de la Avenida São Paulo, de la ciudad de São José dos Quatro Marcos-MT en el año 1980. Esta actividad proporcionó un conocimiento significativo a los alumnos, contemplando el currículo propuesto en el libro de texto con elementos de historia local. Nos preguntamos cómo las acciones del gobierno federal influyeron en la vida cotidiana de la población de un pueblo en formación en el interior del estado de Mato Grosso y cómo dichas acciones contribuyeron al asentamiento del pueblo. Nos dimos cuenta de que, al trabajar con una fotografía de la principal avenida de la ciudad, provocamos una condición de pertenencia e inserción histórica en los alumnos. Comprobamos que con pocos recursos es posible llevar a cabo una clase que contemple de forma significativa el currículo propuesto.

Palabras clave: Fotografía; Historia; Enseñando.



Introdução


A experiência didática tem como objetivo contextualizar os conteúdos Políticas públicas do governo João Figueiredo da Ditadura Civil-Militar, voltadas para as atividades rurais que incentivaram a migração para Mato Grosso nas décadas de 1970 e 80, com alunos de uma turma do 9º Ano do Ensino Fundamental, da Escola Estadual “Lourenço Peruchi”, localizada num bairro periférico do Município de São José dos Quatro Marcos-MT

Foi planejada e aplicada uma aula dialogada e expositiva, com duração de uma hora, no qual apresentamos aos alunos uma fotografia do ano de 1980, da Avenida São Paulo, no município de São José dos Quatro Marcos-MT. O historiador Paul Veyne diz que o trabalho do historiador é de “espantar com o que é óbvio” (VEYNE, 1998). Daí surgiu à problemática, quais interesses estariam envolvidos com esta propaganda?

A contextualização dos conteúdos históricos, presentes no currículo escolar e praticado em sala de aula, leva ao desenvolvimento do processo de conhecimento científico na disciplina de História. E pode proporcionar sentido na vida do aluno, não exatamente com uma utilidade prática, mas sim para construção de sua identidade sociocultural.

Como afirmou Bittencourt, (2009, p. 165), a “associação entre cotidiano e história de vida dos alunos possibilita contextualizar essa vivência em uma vida em sociedade e articular a história individual a uma história coletiva”. Neste sentido, a história local proporciona a compreensão do entorno do aluno, incidindo generalizações e particularidades da história nacional.

A metodologia do trabalho seguiu a teoria proposta pela “Nova História Cultural”, como a indicada por Michel de Certeau, pois esta afirma que o estudo do passado só tem sentido quando se parte de uma análise do presente, possibilitando aos professores que estão trabalhando na educação básica, contextualizar o saber histórico.

Os livros didáticos, fornecidos pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), são pensados e produzidos para atender estudantes de todo o território nacional, não sendo possível incluir aspectos da história regional e local que contemplem a diversidade brasileira cultural. O professor, nessa medida, é desafiado a criar e a definir dimensões pedagógicas e de conteúdo que mobilizem relações históricas e que medeiem o processo de aprendizagem no ensino de história. Essas mediações ainda dependem de outras conexões fundamentais: formação inicial e continuada do professor; conhecimento prévio dos estudantes; materiais didáticos e paradidáticos e infraestrutura escolar. Considera-se, nessa medida, os aspectos socioculturais de estudantes e professores. Dessa maneira, embora o PNLD concorra para uma universalização engessada do ensino de história, o currículo extrapola o aspecto formal e expressa um “currículo em ação” (SROCZYNSKI, 2002).

A experiência didática foi fundamentada pela autora Regina Beatriz Guimarães Neto, que discute a temática Migração para Mato Grosso no final do século XX, indicando que a propaganda levou ao ideário de terras produtivas do estado de Mato Grosso, para todo o território nacional.


Migração para Mato Grosso nas décadas de 1970 e 1980, elementos para a história local.


O período estudado situa-se entre 1979 e 1984, quando se percebe em São José dos Quatro Marcos, MT, toda uma preocupação em organizar e racionalizar a atividade agrícola com determinados fins relacionados a interesses políticos públicos e privados. Além de se presenciar que nesse período a maior parte da população se localizava na zona rural3, o que faz com que toda forma de intervenção estatal seja mais consistente no campo. Desse movimento que se forjava a ideia base de projeção econômica, e as demais atividades estavam, de certa forma, dependentes da agricultura.

Guimarães Neto (2002), ao discutir a colonização da região norte de Mato Grosso, afirma que as propagandas do governo e das colonizadoras incentivavam a ocupação de terras com a intenção de fazê-las produtivas na economia liberal brasileira. Este era um dos pilares da política de colonização dos tempos contemporâneos. Portanto, seria possível relacionar as propostas políticas de incentivo agrícola praticadas no município de Alta Floresta-MT com as praticadas em São José dos Quatro Marcos-MT, pois todos os programas de desenvolvimento voltados para o bioma Amazônico envolviam todo o estado.

Nesse período, grande parte dos políticos da esfera municipal, estadual e federal pautavam seus discursos apresentando a possibilidade de tornarem produtivas as terras “vazias”, mostrando o potencial agrícola do município de São José dos Quatro Marcos, mas também estavam presentes em outros municípios, como se percebe na pesquisa de Guimarães Neto sobre o processo de colonização de Alta Floresta-MT. Assim, os que fixaram essa faixa, também tinham a intenção de propagar a ideia de terras produtivas e de bons negócios: uma estratégia de fazer do município um consistente polo agrícola, com o apoio de políticas governamentais.

Esses incentivos dos governos vinham através da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Mato Grosso – EMATER, da Campanha de Armazéns e Silos do Estado de Mato Grosso – CASEMAT, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e do Banco do Brasil S.A. ou de programas como o Polonoroeste. O governo federal garantia um preço mínimo para cada cultura agrícola. Se o produtor não conseguisse vender a sua produção por um preço maior que o mínimo, o governo compraria, armazenaria e posteriormente faria o leilão dessa produção.

Podemos comparar este incentivo do governo em São José dos Quatro Marcos com a construção de um imaginário sobre a abundância de que Guimarães Neto fala em A Lenda do Ouro Verde: “A representação da terra de abundância, e muitos signos que sobrepujam o conteúdo explícito e produzem a construção de um lugar longínquo, capaz de oferecer oportunidades para todos” (GUIMARAES, 2002, p. 34).

A análise da fotografia se ateve principalmente a frase apresentada na faixa, pois havia outros aspectos que poderiam ser lidos a partir desta fotografia.





Fotografia da Avenida São Paulo – 1980 S.J. dos 4 Marcos-MT

Fonte: Autor desconhecido, arquivos da Prefeitura Municipal de S.J. dos 4 Marcos-MT, 1980.


Percebe–se que o principal foco do fotógrafo foi o de registrar o espaço urbano da cidade, as ruas e o comércio. Um elemento dessa fotografia nos chama a atenção: em um lado da avenida havia uma faixa em que se apresenta um discurso corrente da época. Na faixa está escrito: “Aqui o Governo Compra: Arroz, Feijão, Milho e Soja”.

Na faixa propagava-se a ideia da terra das oportunidades para quem ali investisse. Não havendo necessidade de se preocupar em vender os seus produtos, porque o governo compraria toda a sua produção agrícola.

Disso emerge a questão central, problematizadora: como o discurso do “progresso” agrário realizado pelas políticas públicas influenciou no processo imigratório das décadas de 1970 e 80 para Mato Grosso? Como inserir a história local no currículo relacionando com a história nacional? Estas indagações orientaram esta experiência didática de ensino de história.

Nela vemos que o governo federal, expressando o ideário do progresso agrícola estimulava os agricultores praticarem determinadas atividades agrícolas, que contribuiriam com o fortalecimento das divisas financeira do país. A faixa apresenta ao leitor a ideia de que o município era produtivo e que os agricultores poderiam plantar, tendo o governo como o principal comprador da produção. Aliás, essa ideia esteve presente no lema do governo militar João Figueiredo (1979-1985), “Plante que o João garante”. No governo do último presidente da Ditadura Civil-Militar João Figueiredo (1979-1985) foi anunciado um Programa de incentivo à agricultura. Idealizado pelo Ministro do Planejamento Antônio Delfim Netto, nasceu com o interessante slogan “Plante que o João Garante”.

A situação de fronteira agrícola sempre é um espaço de riscos de toda “sorte ou azar”. A possibilidade de abundante produção encontrava-se na fertilidade natural do solo, mas a transformação desta em ganhos financeiros dependia de uma série de riscos não controlados pelo produtor. O conceito de fronteira agrícola nas décadas de 1970 e 80, foi representado pelo avanço da agricultura moderna sobre as regiões centro-oeste e norte do Brasil, estas regiões eram consideradas pelo governo federal um “vazio demográfico”, improdutivas economicamente, necessitando da intervenção estatal.

A garantia de compra e de preço mínimo significaria uma segurança a mais e alguns riscos a menos. Quem vê a fotografia, e lê a faixa tem a impressão de que a todos os produtores, se garantiria a compra e o preço mínimo. Mas isto só valia para aqueles que recebessem assistência técnica e tivessem crédito do Banco do Brasil S.A. Então a imagem poderia manipular a opinião pública. Vejamos como Kossoy explicita o poder das imagens:

A manipulação tem sido possível justamente em função da mencionada credibilidade que as imagens têm junto à massa, para quem, seus conteúdos são aceitos e assimilados como a expressão da verdade. Comprova isso a larga utilização da fotografia para veiculação da propaganda política, dos preconceitos raciais e religiosos, entre outros usos dirigidos (KOSSOY, 2002, p. 20).

Kossoy entende que devido à credibilidade que as imagens operam, transmitem, torna-se fácil a manipulação. A propaganda política direcionada, neste momento, aos produtores agrícolas teve seus efeitos e eficácia? Através das respostas proferidas pelos alunos, percebe-se que grande parte dos familiares, principalmente os avós, migraram para o município justamente neste período de tempo.

Portanto, o ofício do historiador não está voltado exclusivamente para a escrita da história, ou melhor, as teorias e metodologias que regem tal trabalho, mas também por uma série de práticas presentes na pesquisa historiográfica, que não aparecem visivelmente no texto e que influencia no trabalho final. Tal orientação permite que o historiador eleve algumas inferências históricas necessárias. Assim, fazer história como diria Certeau:

[...] é uma prática. Sob este ângulo podemos passar para uma perspectiva mais pragmática, considerando os caminhos que se abrem sem se prender mais à situação epistemológica... É nessa fronteira mutável, entre o dado e o criado, e finalmente entre natureza e a cultura, que ocorre a pesquisa [...] (CERTEAU, 2008, p.78).

A afirmativa do historiador de Certeau atenta para o fato de que o trabalho do historiador é regido pelas posições teóricas, metodológicas e práticas que definem o fazer história, das quais se construa novas interpretações, situando questões que afligem a atualidade. Essa reflexão exige problematizar os arquétipos epistemológicos.

Da imagem apresentada como geradora de novas fronteiras entre “o dado e o criado” (CERTEAU, 2008, p. 78) na atividade pedagógica, será que nossa relação com a política agrária não permanece ligada a um modelo hegemônico tradicional?


Livro didático no ensino de história

A maior dificuldade encontrada pelos professores de história está justamente em estabelecer ligações que façam sentido para os alunos, entre a história local, nacional e geral. Substituindo a abordagem eurocêntrica, por outras que valorizem diversos aspectos: culturas, sociais, econômicos e políticos. A ideia de estudar toda a história da humanidade já foi descartada pelos historiadores, entretanto deve-se ter uma preocupação nas abordagens historiográficas em sala de aula com uma concepção de totalidade.

Os livros didáticos não têm a função de estabelecer estas conexões entre o local, nacional e geral. Compete ao professor esta tarefa, de transformar o saber acadêmico em um saber a ser apreendido pelos alunos, o saber do professor é diferente do saber de um técnico. O professor opera com diferentes possibilidades, subsídios trazidos pelos alunos, formação inicial e continuada, e diversos fatores que fornecerão elementos para a formação não apenas dos alunos, mas também dos professores.

O livro didático é o instrumento de trabalho mais utilizado de professores e alunos. A produção deste gênero literário está passando por algumas mudanças nos últimos anos, mas a ideia de um livro ideal coloca este material em alguns momentos como vilão da educação. Ele possui vantagens e desvantagens como qualquer outro instrumento pedagógico.

Neste sentido, não devemos esperar que os livros didáticos contemplem todas as necessidades de ensino e aprendizagem dos alunos, considerando também que se volta para uma base comum de conteúdos independente das histórias locais.

O livro utilizado pela turma de 9º ano do ensino fundamental é o Historiar de Gilberto Cotrim e Jaime Rodrigues da Editora Saraiva. Nele os autores apresentam o conteúdo do período da Ditadura Civil-Militar, destacando os aspectos políticos (Atos Institucionais, SNI, DOPS e CCC) e econômicos, tais como o “milagre econômico” e a crise do petróleo no final da década de 1970.

As imagens, contidas no livro enfatizam os conteúdos descritos nos textos, referem-se aos tanques de guerra em vias públicas, às manifestações contra o regime, às repressões policiais, às grandes obras construídas neste período. Ainda apresenta algumas charges que tecem críticas ao regime. Os outros conteúdos apresentados no livro seguem também uma perspectiva política, destacando ações governamentais. Análise do livro ficou restrita somente ao capítulo que corresponde a Ditadura Civil-Militar, que os autores apresentam como Ditadura Militar.

No início da aula foi pedido para os estudantes encontrarem no livro didático o capítulo que correspondesse à temática da Ditadura Civil-Militar no Brasil, proporcionando capacidades de busca e relações já conhecidas por eles. Após folearem as páginas do capítulo e observarem as imagens e os subtítulos descritos, foi observado por um grupo de alunos que não apareceram imagens de mulheres. Uma das indagações expressa foi: “será que estas não tiveram participação nas políticas de controle ou desobediência ao sistema?”.

Como sabemos a participação das mulheres foi decisiva em muitos momentos de repressão. Sobre as mulheres, no final do capítulo como anexo é apresentado uma imagem de um grupo de mulheres que participaram da Comissão de Anistia. Este talvez seja um dos problemas encontrados nos livros didáticos da atualidade, para incluir grupos antes excluídos pela história da humanidade, são apresentados nos novos manuais como anexo, permanecendo o texto do capítulo com o enfoque de décadas.

É certo que o uso de apenas uma fonte para o estudo de história limita as possibilidades do conhecimento histórico, porém não é possível desenvolver o conhecimento histórico sem textos ou fontes escritas. O livro didático pode servir como um ponto de partida, como foi utilizado nesta experiência didática, não podendo ser o culpado por todos os problemas do ensino, segundo (FONSECA, 2006, p.56) “o livro didático é uma das fontes de conhecimento histórico e, como toda e qualquer fonte, possui uma historicidade e chama a si inúmeros questionamentos”.

Quando o professor se vale do livro didático como fonte do conhecimento histórico, poderia principiar pela análise do contexto histórico em que o material foi produzido, pois este possui uma historicidade própria. Os alunos da educação básica não dominam plenamente os aspectos históricos da produção de um documento e, apesar disso, podemos introduzir algumas reflexões sobre a produção do livro didático.

Como resolver o problema de simplificação de temáticas feita pelos livros didáticos? Talvez esta resposta esteja na diversificação das fontes trabalhadas em sala. É dessa perspectiva que é necessário conceber novas mediações pedagógicas e didáticas a partir do livro didático para o ensino história, em nosso caso, mobilizar a história local.

Registro da experiência didática de ensino

A experiência didática, aqui descrita, foi realizada no segundo bimestre do ano letivo de 2018, na Escola Estadual Lourenço Peruchi no município de São José dos Quatro Marcos-MT, com 22 alunos da turma do 9º ano do ensino fundamental.

O elo entre o conteúdo do livro didático com a fotografia foi a crise do petróleo. No final da década de 1970 uma elevação dos preços do petróleo agravou os problemas brasileiros, e as taxas internacionais de juros continuaram subindo, dificultando a tomada de novos empréstimos (Fausto, 2003). Os autores do livro didático trazem como destaque este momento histórico, quando dizem:

O aumento nos preços do petróleo continuava impactando a economia, pois naquela época 80% do petróleo consumido no país era importado. Para importa-lo, gastava-se quase metade do valor arrecadado com as exportações. Com isso, o governo ficava sem dinheiro para investir e buscar novos empréstimos, aumentando a dívida externa (COTRIM, 2015, p. 217).

Percebe-se no texto as dificuldades de controlar a balança comercial, para capitar empréstimos com instituições internacionais. O discurso do governo João Figueiredo voltou-se para a necessidade de o “produtor” rural assumir um papel de empresário, em que se resolveriam os problemas de divisas financeiras, que o país enfrentava em função da crise do petróleo. É possível apreender esta necessidade na propaganda feita na faixa, fixada na avenida principal do município de São José dos Quatro Marcos-MT.

Entende que os incentivos dos governos para a agricultura no município buscavam favorecer somente culturas como: o arroz, feijão, milho e a soja. Culturas estas que gerariam divisas financeiras com as exportações, deixando de lado a principal atividade agrícola do município que, apesar disso, era o café, direcionado para o consumo regional, e conforme a tradição dos agricultores não havia sequer plantios expressivos de soja na região.

Após a leitura do fragmento do livro didático, que fala sobre a crise do petróleo, a fotografia foi apresentada e contextualizada. Na sequência, a turma foi dividida em duplas para explorar o conteúdo da imagem de modo que cada um observasse e descrevesse a imagem para o outro. Essas descrições foram apresentadas ao restante da turma e comparadas entre si, com a finalidade de demonstrar e debater as diferenças de percepções da imagem trabalhada.

Apesar do foco principal da aula ser a faixa com a propaganda política capturada pela fotografia, os alunos tiveram outras percepções, como: a presença de uma carroça de tração animal na avenida principal da cidade, o fato da avenida não possuir asfalto, a pouca quantidade de veículos automotores e ausência de motocicletas.

A partir dos aspectos apresentados pelos alunos foi possível relacionar outras discussões: destacando a invenção do automóvel e sua introdução no Brasil; cidade, eletricidade, novos ritmos da vida moderna; o contraste entre o automóvel e a carroça; o ponto de vista do fotógrafo; o plano da imagem; e migração.

A fotografia é uma representação do real e, para entender a imagem, é necessário desconstruí-la. Pode-se começar pelo posicionamento do fotógrafo, é ele quem decide o ângulo, iluminação, objetos e pessoas em destaque. A fotografia é produzida com uma determinada intenção. E a imagem gera no observador outras imagens mentais, estando ligada a um processo de memória. Observando a imagem apresentada na fotografia, foi despertado nos alunos outras imagens mentais. Molina nos ajuda a entender estre processo como:

A polissemia da mensagem visual envolve ramificações de associações, uma multiplicidade de símbolos e interpretações e possui como variável um repertório cultural construído em meio às relações sociais e históricas, implicando também pela ótica do leitor, a seleção de significados, escolhendo alguns, excluindo outros. (MOLINA, 2008, p.125)

Molina (2008) observa que a imagem de uma fotografia é polissêmica e é carregada de significados variáveis. Os caminhos que um observador traça ao olhar uma imagem conectam a um repertório cultural, levando a interpretações e possibilidades variadas de leitura. Nesse sentido as imagens exibidas em sala de aula, deveriam ser analisadas de modo pleno, esgotando todas as possibilidades de interpretação

As fotografias transformadas em materiais didáticos contribuem para iniciação da compreensão de documentos históricos em sala de aula. O professor pode iniciar a partir dos interesses dos alunos, ligando suas experiências com as tramas e conceitos presentes nos livros. Caimi, ao se referir a essa dinâmica, sublinha as mediações fundamentais que são possíveis de construir:

[...] levar em conta o universo da criança ou do adolescente não é, pois, abdicar do rigor intelectual ou do valor do conhecimento histórico, mas garantir que a apropriação deste conhecimento ocorra permeada de sentido e significação, resultando em sólidas aprendizagens [...] (CAIMI, 2006, p.34).

Caimi descreve que os professores têm que levar em consideração os pressupostos e os mecanismos com que os alunos contam para o aprendizado. Os próprios alunos reivindicam um ensino mais significativo.

Em seguida foi apresentado algumas questões para a turma refletir e responder oralmente: por que a cultura de soja não vigorou na região, mesmo com apoio do governo federal? Por que, o governo federal dava incentivo na política do preço mínimo somente nas culturas de arroz, feijão, milho e soja? Quais culturas agrícolas predominavam no município recém emancipado?

Foi possível apreender nas respostas apresentadas pela turma compreensões da temática trabalhada. Alguns relataram que nunca foi tradição cultivar soja em nossa região, apenas na última década que alguns proprietários rurais iniciaram o cultivo de soja, voltado especialmente para ração de gado.

Outros alunos ressaltaram que até na atualidade os governos incentivam mais as culturas que são voltadas para exportação, desprestigiando os pequenos e médios produtores agrícolas. Foi observado também o predomínio das culturas no município. Nas décadas de 1970 e 80 prevalecia a lavoura de café e, a partir de 1990 até os dias atuais, a pastagem se tornou recorrente para alimentar a produção de bovinos de corte e leite.

O professor de história pode buscar outras formas de contribuir para o conhecimento de seus alunos, através da pesquisa-histórica, tendo a pesquisa como uma descoberta do conhecimento. Como afirma Silva: “A ideia de que para ser professor de história, ou melhor, um ‘bom professor de história’ é necessário apenas saber história já foi ultrapassada” (SILVA, 2007, p.70).

Exercendo a tarefa problematizar a história local, o professor envolve seus alunos com a pesquisa, possibilitando a curiosidade e busca de novas fontes de informação, no caso, fontes históricas, comparando, confrontando e relacionando os conteúdos de história aprendidos e a serem construídos, levando-os, por exemplo, a pesquisar em jornais antigos, livros literários como documento interdisciplinar, e até mesmo certidões de nascimento, carteira de trabalho, carteira de motorista, documentos que proporcionam acessar os direitos do cidadão, entre outros.


Considerações finais


Além de trabalhar aspectos do processo migratório para o município de São José dos Quatro Marcos-MT, introduziu-se com esta experiencia didática o conteúdo Ditadura Civil-Militar brasileira, temática que foi concluída em aulas posteriores. Foi possível perceber, na participação dos alunos, que, mesmo tendo explorado apenas um fragmento do livro didático, compreenderam, relacionaram e compararam fatos históricos de diversas dimensões, local, regional e nacional, validando interpretações de processos históricos globais e locais, generalizações, particularidades e singularidades dos contextos históricos. Construindo o “currículo em ação” (SROCZYNSKI, 2002), adequado ao que efetivamente é realizado em sala de aula por professores e alunos.

As experiências históricas podem ser construídas com diversas fontes. Porém muitas vezes o único material textual que temos acesso consiste no livro didático, contudo, servindo-se dele como uma fonte introdutória para conhecimento histórico. As críticas aos livros didáticos serão necessárias, pois sabemos que toda escrita histórica nunca será definitiva, precisando constantemente de reformulações e novas pesquisas historiográficas. Silva disse: “Mesmo um bom livro didático terá efeitos prejudiciais, se não for entendido como um instrumento a mais nesse processo, que depende de outras leituras, da interpretação de diferentes fontes de época”. (SILVA, 2007, p.87).

Silva ao destacar o livro didático como um instrumento de ensino, enfatiza a importância de trabalhar com diferentes fontes, pois mesmo um “bom livro didático”, não seria suficiente ao aprendizado histórico, precisando mesclar outras possibilidades de trabalho, trazendo significado ao conhecimento histórico, pois este não é estático, havendo sempre a necessidade de um diálogo entre passado e presente.

Como disse Veyne, (1998, p.25) “tudo é histórico logo a História não existe”, assim tudo tem sua historicidade própria logo não existe uma história total, global, dessa maneira a experiência pedagógica pretende chegar a algumas considerações sobre a constituição do mundo agrário em São José dos Quatro Marcos (1979 – 1984) que apresenta algumas rupturas e permanências na sua constituição, envolvendo uma trama de relações entre vários órgãos estatais ou não visando estabelecer uma imagem progressista do município, ao mesmo tempo em que silenciando interesses divergentes entre os agricultores, que nesse processo foram arregimentados ao modelo proposto.

O uso de uma imagem fotográfica capturada, na avenida principal do município de São José dos Quatro Marcos-MT, levou os alunos a refletirem sobre seu presente, investigando e fazendo conexões com o passado, por meio de conteúdos que compõe o currículo de História. Ensaios simples como este, demonstram que para proporcionar uma aula significativa, não se faz necessário muitos recursos.

Referências

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CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.


SROCZYNSKI, Claudete Inês. Formação de professores: um olhar sobre a pesquisa educacional em ação – UNEMAT – Sinop/MT. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2002.


COTRIM, Gilberto. Historiar: 9 . 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.


FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de história: Experiências, reflexões e aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2006.


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GUIMARAES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: UNICEM,2002.


KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica: 3. ed. Cotia, SP: Ateliê, s/d.


MOLINA, Ana Heloisa. Imagens como documentos – professores, alunos e o ensino e aprendizagem de História: uma relação complexa. Revista de Educação Ciências Humanas e Letras, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Canoas/RS, UNESC, n.17, jan./jun., p. 121-134, 2008.


SILVA, Marcos; FONSECA, Selva Guimarães. Ensinar história no século XXI: em busca do tempo entendido. Campinas: Papirus, 2007.


VEYNE, Paul. Como se Escreve a História e Foucault revoluciona a História. Brasília: UNB, 1998.


Documento Iconográfico

Fotografia da Avenida São Paulo – 1980. Fonte: Autor desconhecido; arquivos da Prefeitura Municipal de São José dos Quatro Marcos-MT.


Recebido em: março/2022.

Aprovado em: abril/2022.

1 Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT. E-mail:kellenfbatista@hotmail.com

2 Mestre em Ensino de História pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT

3 Até meados de 1980 o município de São José dos Quatro Marcos era predominantemente rural, mas com a criação do Frigorífico “SX Quatro Marcos” em 1984 – assim como toda uma preocupação de organização do espaço urbano por parte dos dirigentes municipais – contribuiu para que na década de 90 essa cidade se tornasse predominantemente urbana. Ver www.sidra.ibge.gov.br.

Revista Devir Educação, Lavras, vol.6, n.1, e-555, 2022.

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