ISSN: 2526-849X



O racismo estrutural e as visões de mundo de estudantes cotistas raciais da Universidade Federal do Rio Grande (FURG)


Structural racism and the worldviews of racial quota students at the Federal University of Rio Grande (FURG)


El racismo estructural y las cosmovisiones de los estudiantes de cuota racial de la Universidad Federal de Rio Grande (FURG)


Elina Rodrigues de Oliveira1

Ricardo Gonçalves Severo2


Resumo


O presente artigo é resultado de dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), e busca compreender como estudantes negros/as percebem o seu acesso e permanência no ensino superior. Partimos da premissa que o acesso de estudantes negros/as ao ensino superior, através da política de cotas no Brasil, resulta da luta e mobilização do movimento negro do país bem como de influências externas. A implementação da Lei n.º 12.711/2012, a lei de cotas no ensino superior, nos leva a outras discussões, como a permanência e a preparação dos/as profissionais e instituições para receber o/a aluno/a cotista racial. Esse artigo resultou de uma pesquisa qualitativa, que teve por objetivo tentar identificar quais as motivações que estudantes cotistas raciais da FURG têm para decidirem cursar uma graduação, e quais são os seus sentimentos em relação à universidade. Foram realizadas entrevistas narrativas com oito estudantes de cursos de graduação da FURG, que tiveram seu conteúdo analisado mediante a utilização do Método Documentário desenvolvido por Ralf Bohnsack (2020). Verificou-se a ocorrência do racismo estrutural e institucional na universidade, considerando as falas dos/as entrevistados/as, o que demonstra a necessidade de que haja mudanças na estrutura da universidade e também a implementação de uma política antirracista.

Palavras-chave: cotas raciais; ações afirmativas; racismo estrutural; racismo institucional. antirracismo.



Abstract


This article is the result of a master's thesis presented to the Graduate Program in Education (PPGEDU) of the Federal University of Rio Grande (FURG), and seeks to understand how black students perceive their access and permanence in higher education. We start from the premise that the access of black students to higher education, through the quota policy in Brazil, results from the struggle and mobilization of the black movement of the country as well as external influences. The implementation of Law No. 12,711/2012, the law of quotas in higher education, leads us to other discussions, such as the permanence and preparation of professionals and institutions to receive the student/racial quotaholder. This article resulted from a qualitative research, which aimed to try to identify what motivations that racial quota students of FURG have to decide to attend an undergraduate course, and what are their feelings about the university. Narrative interviews were conducted with eight undergraduate students of FURG, who had their content analyzed using the Documentary Method developed by Ralf Bohnsack (2020). It was verified the occurrence of structural and institutional racism in the university, considering the statements of the interviewees, which demonstrates the need for changes in the structure of the university and also the implementation of an anti-racist policy.

Keywords: racial quotas; affirmative action; structural racism; institutional racism; anti-racism.



Resumen


Este artículo es el resultado de una tesis de maestría presentada al Programa de Posgrado en Educación (PPGEDU) de la Universidad Federal de Río Grande (FURG), y busca comprender cómo los estudiantes negros perciben su acceso y permanencia en la educación superior. Partimos de la premisa de que el acceso de los estudiantes negros a la educación superior, a través de la política de cuotas en Brasil, es el resultado de la lucha y movilización del movimiento negro del país, así como de las influencias externas. La implementación de la Ley N° 12.711/2012, la ley de cuotas en la educación superior, nos lleva a otras discusiones, como la permanencia y preparación de profesionales e instituciones para recibir al cupero estudiantil/racial. Este artículo fue el resultado de una investigación cualitativa, que tuvo como objetivo tratar de identificar qué motivaciones tienen los estudiantes de cuota racial de la FURG para decidir asistir a un curso de pregrado, y cuáles son sus sentimientos sobre la universidad. Se realizaron entrevistas narrativas a ocho estudiantes de pregrado de la FURG, quienes analizaron su contenido utilizando el Método Documental desarrollado por Ralf Bohnsack (2020). Se verificó la ocurrencia de racismo estructural e institucional en la universidad, considerando las declaraciones de los entrevistados, lo que demuestra la necesidad de cambios en la estructura de la universidad y también la implementación de una política antirracista.

Palabras clave: cuotas raciales; acciones afirmativas; racismo estructural; racismo institucional; anti racismo.



Introdução


A política de cotas raciais no ensino superior, mesmo sendo algo relativamente novo em nossa sociedade, é um resultado que remonta a uma luta que iniciou há muitos anos no Brasil. O ativismo do movimento negro, conjugado a uma maior organização e representação nas instituições e o apoio externo, levaram à aprovação em 2012, da Lei n.º 12.711 que regulamentou à política de cotas, dentre elas a racial, nas instituições de ensino superior. Como resposta a essa política vimos um aumento no número de pessoas negras que puderam ingressar nas universidades. Em contrapartida, surgiram denúncias de fraudes que trouxeram à tona as dificuldades que o/a estudante negro/a encontrou ao se deparar com o ambiente acadêmico, outrora elitizado. Estas dificuldades se referem às poucas ou inexistentes possibilidades de bolsa de estudo, permanência, auxílios para transporte e alimentação, bem como a necessidade de combinar o trabalho com a formação acadêmica e o confronto com o racismo estrutural3 e institucional4. A inclusão ocorre em um ambiente que foi criado pelas e para as elites, onde não houve nenhuma adequação, seja na formação de professores/as, profissionais e currículos, o que faz com que continue a reprodução do racismo nesses lugares.


Um breve retrospecto sobre as cotas raciais no ensino superior brasileiro


As cotas raciais no ensino superior brasileiro remontam à década de 30, porém, para fins de análise, iremos nos ater ao recorte temporal a partir dos anos 2000. Com vistas à inclusão de pessoas negras ao ensino superior público, a primeira instituição a implementar um programa de cotas raciais no Brasil foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2003, mesmo antes de haver qualquer tipo de lei federal que instituísse tal medida. Na sequência, várias outras universidades também instituíram seus programas de cotas raciais nos mais diversos moldes, tendo em vista a inexistência de uma lei que a regulamentasse. Algumas universidades optaram pela reserva de vagas, outras se utilizaram de uma bonificação sobre a nota obtida no processo seletivo a fim de conferir uma vantagem às pessoas negras e ainda, existiam aquelas que acrescentavam vagas aos cursos oferecidos com a finalidade de reservá-las a essas pessoas.

Iniciou-se, concomitantemente aos avanços das cotas raciais, uma série de ataques e especulações em torno dessa política, levando essa questão para o Supremo Tribunal Federal (STF), que ampliou a discussão, ouvindo diversos setores envolvidos e concluiu pela constitucionalidade das cotas.

No governo da presidenta Dilma Rousseff, tivemos a implementação da Lei n. º 12.711 de 29 de agosto de 2012, que determinou a reserva de 50% das vagas ofertadas em estabelecimentos de ensino superior para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, sendo que deste percentual reservado de vagas, 50% deveriam ser destinadas a estudantes de famílias com renda per capita de até 1,5 salários mínimos.

Em 2019 houve a publicação de uma pesquisa feita pelo IBGE, intitulada: Desigualdades raciais por cor ou raça no Brasil. Nesta pesquisa, divulgou-se que as pessoas negras são a maioria no ensino público de nível superior no Brasil, representando 50,3% do total de estudantes matriculados/as em 2018, enquanto estudantes brancos/as representavam 46,6% do total de matriculados/as. Tal indicador suscita o pensar criticamente sobre a publicação, por razão da proximidade do prazo para a reavaliação da Lei n.º 12.711/2012, que será feita em 2022.

Santos (2009) afirma que para as famílias mais abastadas, a entrada na universidade é algo certo, um destino altamente provável, enquanto para as famílias menos abastadas, que geralmente são negras, a entrada na universidade é vista como um feito, devido a não ser algo presente em seu imaginário, sendo visto como algo distante, pouco provável. Esse pensamento não é somente fruto do imaginário, mas também algo realmente existente desde a constituição do ensino superior brasileiro na década de 30, algo que nunca foi pensado para ser um ambiente acessível e democrático, mas sim como fruto do anseio das elites para atender à demanda dos seus/suas filhos/as por uma educação de nível superior dentro do país.

Quando houve a criação das primeiras universidades públicas no Brasil, a população negra já gozava há várias décadas da exclusão acarretada pela chegada da imigração europeia, que vieram para servir de mão-de-obra assalariada e promover um embranquecimento da população. A população negra foi relegada à posição de marginalidade social, assim como enfatiza Carvalho (2002), o povo negro foi excluído antes mesmo de poder competir com o branco.


As universidades se consolidaram no Brasil após o grande deslocamento racial provocado pela chegada dos imigrantes europeus, entre 1870 e 1920, num total de 3.400.000 de pessoas. Os negros foram excluídos tão intensamente do mercado de trabalho que, já em 1901, 90% dos operários industriais em São Paulo eram imigrantes. (...). Isso significa que as universidades públicas (tais como as do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul) foram consolidadas nos anos 30 pela primeira geração de brancos imigrantes que havia ascendido socialmente, através da industrialização racialmente estratificada. Ou seja, primeiro os negros foram retirados dos espaços econômicos que conduziam à ascensão social; depois apareceram as universidades públicas como instituições a cujo ingresso eles já não podiam aspirar porque haviam sido eliminados antes como potenciais competidores dos brancos (CARVALHO, 2002, p. 63).



O autor ainda aborda sobre a expansão das universidades no século XX, que ocorreu sem haver nenhuma medida para reparar a exclusão que era característica marcante desde os tempos de sua criação. Sendo um ambiente criado pelas e para as elites, a universidade brasileira serve como instrumento de reprodução das hierarquias sociais. Santos (2009) destaca que a pessoa negra ao entrar na universidade sofre com uma dupla condição fragilizadora: a de irrelevância e a de carência. A condição de irrelevância se vincula ao fato de que os conhecimentos adquiridos até o vestibular perdem a sua importância dado o “caráter rarefeito do código acadêmico”, contrário à vulgaridade do mundo ao qual o/a aluno/a negro/a e pobre pertence. Já a condição de carência refere-se à falta de capital cultural incorporado, como habilidades linguísticas, o gosto5 e outros fatores que são ligados à cultura dita legítima.

Considerando tais aspectos, buscou-se compreender como os processos de racismo estrutural são percebidos no cotidiano dos/as estudantes, requerendo para tanto um processo de reconstrução de suas vivências dentro da universidade, o que será abordado a seguir.


Caminhos metodológicos


A pesquisa seguiu uma proposta qualitativa, que segundo Haguette (1987) é um método que possibilita a compreensão de certos fenômenos sociais enfatizando suas origens e razão de ser. Foram realizadas entrevistas narrativas que segundo Bohnsack (2020), é uma metodologia que permite que o narrador descreva a sua história de forma a focalizar e estruturar a sua narrativa de acordo com o seu próprio sentido de relevância. Tal metodologia pressupõe que o narrador possa desdobrar a sua história preferencialmente sem a interferência do entrevistador. Weller et al. (2014) argumentam que esse tipo de entrevista procura romper com a rigidez comum às entrevistas estruturadas:


A entrevista narrativa busca romper com a rigidez imposta pelas entrevistas estruturadas e gerar textos narrativos sobre as experiências vividas, que, por sua vez, nos permitem identificar as estruturas sociais que moldam essas experiências (WELLER et al., 2014, p. 327).


A análise das entrevistas narrativas se deu através do método documentário, desenvolvido por Ralf Bohnsack (2020), que é um método reconstrutivo que se apoia na geração de tipos6 por meio da análise comparativa. Nesse sentido é possível constatar que, as visões de mundo “(...) são o resultado de uma série de vivências ou de experiências ligadas a uma mesma estrutura que, por sua vez, constituísse como base comum das experiências que perpassam a vida de múltiplos indivíduos” (WELLER, 2002, p. 378). 

O método documentário se propõe a tornar as visões de mundo em objeto de análise científica. Para isso, ele se baseia na reconstrução do cotidiano dos sujeitos. Bohnsack (2020) destaca que há uma diferenciação entre a reconstrução no nível metodológico da reconstrução na prática da pesquisa, o que ele afirma que conduz o/a pesquisador/a, com sua postura genética7, a uma autorreflexão da sua própria prática diante da “postura natural” do cotidiano das pessoas que são os objetos da pesquisa.


No âmbito dessa reconstrução autorreflexiva, da reconstrução da reconstrução, precisamos, como já foi mencionado, diferenciar mais uma vez entre uma reconstrução no nível metodológico ou epistemológico, sobre o qual já falei sucintamente, e uma reconstrução no nível da prática de pesquisa A mera reconstrução de regras metodológicas ainda não nos coloca na situação de realizar a prática de pesquisa. (Bohnsack, 2020, p. 38).



Weller et al. (2014) enfatizam a necessidade de reconstruir o sentido implícito das falas do/a entrevistado/a, buscando os diferentes níveis de sentido existentes em sua narrativa: “Deve-se acima de tudo, reconstruir o sentido subjacente e implícito na fala do entrevistado. Trata-se aqui da interpretação dos diferentes níveis de sentido (...)” (Weller et al., 2014, p. 328).

Segundo Bohnsack (2020), para compreender as ações, as posturas ou orientações dos sujeitos é necessário que se tenha o conhecimento do contexto experiencial, de vivências dele. O autor cita a distinção feita por Karl Mannheim entre compreender e interpretar, onde a compreensão ocorre entre pessoas que estão vinculadas a um contexto experiencial comum e se dá de forma imediata, não sendo necessário que um interprete o outro. A interpretação seria uma explicação teórico-conceitual de seu processo de produção, é o produto da interpretação genética, ao que se propõe o método documentário.

Segundo Lemos (2017), em estudo realizado na UFPA (Universidade Federal do Pará), o impacto causado pelas cotas difere entre os cursos, sendo que em Medicina, que é bastante concorrido, o/a aluno/a cotista é visto/a como não merecedor/a da vaga. Percebe-se uma supervalorização do mérito individual, que superestima o resultado de um processo seletivo e desconsidera as diferenças sociais e econômicas existentes no nosso país, que relega boa parte da população às piores condições de existência. Em contrapartida, no curso de Ciências Sociais havia um maior entendimento e apoio por parte do próprio corpo docente, que ressaltava a importância do sistema de cotas raciais. Weller (2009) ao analisar a experiência de jovens negras na UNB (Universidade de Brasília), afirma que entre as próprias alunas cotistas, o entendimento sobre a política de cotas raciais difere segundo o curso ao qual pertencem:


Percebe-se que as próprias opiniões das alunas contempladas divergem entre si em dois polos. As alunas de Pedagogia e de Serviço Social mostram-se seguras em defender as cotas raciais. Já as estudantes de Engenharia e de Medicina ponderam sobre a efetividade de tal política, creditando à falta de investimento no ensino público a inviabilidade de uma competição justa para o acesso ao curso superior (WELLER, 2009, p. 90).


A autora ainda fala sobre a valorização do mérito como determinante das relações sociais em determinados espaços na universidade: “(...) a identificação de cotista com a identidade de grupo pode ser enfraquecida em detrimento da valorização do mérito individual, que determina a relação social em certos espaços acadêmicos (WELLER, 2009, p. 91)”.

Partindo dessas informações, os/as entrevistados/as foram escolhidos/as entre estudantes dos cursos da FURG (Universidade Federal do Rio Grande), e divididos/as entre mais e menos concorridos. A seleção dos/as entrevistados/as ocorreu a partir da obtenção da lista de estudantes ingressantes no SISU/2018 (Sistema de Seleção Unificada). Foi escolhido o ano de 2018 pelo fato de os/as alunos/as já estarem no terceiro ano da graduação e, com isso, mais familiarizados/as com o ambiente acadêmico. As entrevistas foram realizadas entre o final de novembro de 2020 e o início de janeiro de 2021, em um total de 8 entrevistados/as (3 homens e 5 mulheres).


Narrativas de resistência, desafios e dilemas de ser um/a estudante cotista racial


Ao utilizarmos as notas de corte do SISU da edição de 2020, dos cursos ofertados pela FURG no primeiro semestre, identificamos os mais e menos concorridos. Tal informação é disponibilizada no site do SISU8. Com base nessa informação, dividimos os/as entrevistados/as em dois grupos assim denominados: Grupo 1 - Cursos mais concorridos: formado por estudantes com as maiores notas de corte; e Grupo 2 - Cursos menos concorridos: formado por estudantes com as menores notas de corte.

As entrevistas tiveram seu conteúdo autorizado por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. As identidades dos entrevistados e entrevistadas foram preservadas, sendo então identificados/as por intermédio da sigla do seu curso de graduação acrescida de inicial correspondente ao seu gênero. Os nomes das pessoas citadas ao longo dos relatos foram alterados, a fim de preservar suas identidades.

No quadro abaixo, traçamos um breve perfil dos entrevistados e entrevistadas, a fim de facilitar a compressão sobre alguns aspectos de suas falas.



Quadro1 – Perfil dos/as entrevistados/as

CURSOS MAIS CONCORRIDOS

ENTREVISTADA/

ENTREVISTADO

DESCRIÇÃO

CURSO

Dir. M

Homem, casado, 2 filhos, policial civil, natural de Rio Grande, 39 anos.

Direito

Med. M

Homem, solteiro, estudante, natural de Nova Brasilândia d’Oeste - RO, (família mora no interior de São Paulo), mudou-se para Rio Grande – RS para cursar Medicina, 22 anos, pai policial militar aposentado e mãe professora.

Medicina

Med. F

Mulher, solteira, estudante, natural de Lajes – BA, mudou-se para Rio Grande – RS para cursar Medicina, 24 anos, pai e mãe agricultores.

Medicina

Psic. F

Mulher, solteira, estudante, natural de Pelotas - RS, 20 anos, mãe professora.

Psicologia

CURSOS MENOS CONCORRIDOS

ENTREVISTADA/

ENTREVISTADO

DESCRIÇÃO

CURSO

Ed. Físic. F

Mulher, solteira, bolsista de projeto de pesquisa, natural de Rio Grande - RS, 21 anos, sua mãe é funcionária da CEEE9.

Educação Física

Eng. Comp. M

Homem, solteiro, recentemente contratado para trabalhar em uma agência marítima na área de programação de software, natural de Rio Grande - RS, 22 anos, pai e mãe donos de um brick10.

Engenharia da Computação

Ped. F

Mulher, solteira, estagiária monitora em escola municipal de educação infantil, natural de Rio Grande - RS, 21 anos, mãe trabalhadora da área da limpeza e higienização.

Pedagogia

Ped. Quil. F

Mulher, casada, 2 filhas, cotista quilombola (bolsista), natural de Rio Grande, 45 anos, seu esposo é carteiro.

Pedagogia - Aluna Quilombola

Fonte: arquivo dos/as autores/as


As entrevistas foram guiadas pelo roteiro abaixo, em que foram elencadas as principais questões, que foram subdivididas de acordo com a sua temática. O roteiro foi escolhido com a finalidade de identificar quais as motivações que levaram os entrevistados e entrevistadas a cursarem o ensino superior: como se resultou na escolha pelo curso, qual a importância de passarem pela banca de heteroidentificação11, e também sabermos sobre suas motivações nessa futura profissão. Se faz importante também, saber quais os sentimentos e vivências que até então, foram mais marcantes durante este período de graduação, saber um pouco sobre o seu histórico familiar e se as suas expectativas permanecem as mesmas ou se foram modificadas durante a trajetória no curso. Interessa saber também, se há uma preocupação com a formação complementar, quais são as suas expectativas para o futuro, seja para a atuação no mercado de trabalho e/ou interesse em dar continuidade aos estudos em uma pós-graduação, e se sofreram algum episódio de racismo na universidade. Por fim, deixou-se livre a última questão a fim de que os entrevistados e entrevistadas pudessem expor livremente alguma questão que achassem pertinente ao conteúdo da entrevista.

A análise das entrevistas se iniciou através da interpretação formulada, que consiste na identificação dos temas e subtemas que apareceram nas falas dos/as entrevistados/as. Para isso, elencamos quais foram as passagens com maior intensidade, as quais Bohnsack (2020) se refere como as metáforas de foco, as quais serão expostas neste trabalho.


Quadro 2 – Tópicos guia para grupos de discussão

BLOCO

TEMA

PERGUNTA INICIAL

OUTRA LINGUAGEM

OUTRAS QUESTÕES

1

Ingresso na universidade

- Tu poderias me falar um pouco sobre como se deu o teu ingresso na graduação?

- Como foi o processo de decidir fazer faculdade?

- Como foi para ti o processo de passar pela banca de heteroidentificação?

- Como se deu a tua escolha pelo curso?

- Quais as tuas motivações nessa futura profissão?

- Quais eram as tuas expectativas antes de entrar na universidade?

2

Universidade

- Como tu te sentiste ao ingressar na universidade?

- Quais foram as tuas primeiras impressões da FURG?

- O que tu vivenciaste na FURG que mais te marcou?

- Poderias me falar sobre os teus sentimentos em relação à universidade? Como tu te sentes no ambiente acadêmico?

- Agora que tu conheces mais sobre o teu curso e a universidade, quais são as tuas expectativas, continuam as mesmas de quando tu ingressaste?


3

Renda Familiar

- Poderias me falar sobre as pessoas que mantém a tua família financeiramente?


- Quem são as pessoas que trabalham na tua casa?

- Como é a tua participação nas finanças da tua família?

- Como tu te manténs financeiramente?


4

Formação extracurricular

- Tu poderias me falar se tu fazes algum curso extracurricular?


- Tu consegues fazer algum curso fora a universidade?




- Tu sentes necessidade de fazer algum curso complementar à tua formação?

- Encontras alguma dificuldade em cursar algo complementar à tua formação acadêmica?

- Tu participas de algum grupo ou desenvolve alguma atividade de pesquisa, ensino ou extensão na universidade? Se sim, qual?

- Quais oportunidades de formação complementar te são oferecidas na universidade?

5

Perspectivas para o futuro

- Tu podes falar sobre os seus projetos para o futuro?

- Quais os teus planos após concluir a graduação?


- Em quais lugares tu gostarias de trabalhar?

- Pretendes fazer pós-graduação?

- Tu achas que terás dificuldades em realizar algum desses planos? Por quais motivos?


6

Racismo

- Tu já percebeste alguma situação de racismo na universidade? Se sim, qual situação?

- Tu já viste ou sofreste algum racismo na FURG? Se sim, como foi?

- Qual o teu sentimento em relação a ser aluno/a cotista racial da universidade?

- Como tu sentes a tua relação com os/as demais colegas devido ao fato de tu ser aluno/a cotista racial?

7

Outros

Não tenho mais perguntas.

- Tu gostarias de falar sobre algum assunto que a gente não conversou?



Fonte: elaboração dos/as autores/as


Sobre as motivações para cursar uma graduação, destacaram-se duas falas no Grupo 2. Ped. Quil. F. relatou que foi uma adolescente que nunca pensou em cursar o ensino superior e que achava que não era uma coisa para ela, o que pode levar a pensar sobre a conformação social que “o lugar de negro” impõe ao sujeito. Ela foi encorajada pela atuação da senhora Maria da Graça da Silva Amaral, ativista do Movimento Negro rio-grandino, que foi uma das pessoas engajadas na criação do processo seletivo específico para estudantes quilombolas.


Ped. Quil. F: Na verdade assim, ó, âhhh eu fui uma adolescente que eu nunca pensei em fazer uma universidade uma faculdade. Eu tenho um irmão com 43 anos que já é formado há mais de 12 anos, mas se eu te falar que eu tinha interesse eu vou estar mentindo tá, aí surgiu oportunidade em 2015 que foi a Maria da Graça12, né?! Que fez todo um trabalho pra, pros quilombolas terem direito de ingressar na universidade com um outro tipo de entrada no caso sem ser o ENEM.

(...) Eu tava na época 41 pra 42, eu dizia sim, cara, que desafiador, mas vamos lá sabe (...) (Dezembro/2020).


Outra fala bastante relevante foi a de Eng. Comp. M (Grupo 2), que ao ser questionado sobre suas motivações para cursar uma graduação, trouxe muito nitidamente a questão do estudo como porta de entrada para o mercado de trabalho e consequentemente, como forma de ascensão social. Ao se referir a uma possibilidade objetiva por meio do estudo, relembramos Bourdieu (2007) quando comenta sobre o investimento educacional como forma de ascensão para as classes menos favorecidas. O autor relata que esse investimento só é feito se houver a possibilidade concreta de manutenção de classe ou ascensão social. Entretanto, por motivo de ter sido reprovado cessou-se a bolsa que recebia, o que lhe impossibilitou a continuidade aos estudos naquela instituição, tendo que concluir o ensino médio pelo EJA13. Vale destacar que o ensino médio concomitante ao curso técnico, ao qual ele estava matriculado, era em turno integral. Tal fato, nos suscita a pensar na necessidade não apenas da vaga, mas nas condições propiciadas para a permanência dos/as alunos/as nas instituições de ensino. Uma vez que no caso em questão, o aluno deixou de poder estudar pelo simples fato de não ter condições de arcar com custos com alimentação e transporte.


Eng. Comp. M: É, e aí eles falaram, ah, não, tipo, termina o ensino médio, já sai podendo trabalhar, né?! 

É. E aí, só que aí deu problema, né?! Tipo, primeiro ano eu cheguei a reprovar, até, né?! Falam que é normal. Mas eu cheguei a, só que deu problema com o auxílio que eu ganhava, né?! Ahm, parei de receber e aí tipo, era complicado ir lá todo dia, ter que comer lá etc, e tipo, não tinha como né, aí eu tive que largar.

Na FURG, eu terminei o ensino médio pelo EJA, né?! Não lembro como é que é, Ensino para Jovens e Adultos né?!

Tinha no Silva Gama aqui, fazia junto com os meus pais até (risos). Que eles nunca terminaram o médio né?! É, mas era tipo, era só um ano e meio né de, ou dois anos não me lembro, de ensino só que aí eu acabei fazendo o, o a prova da do ENEM né, no último dia que ele eliminava, ah na última vez que ele eliminava o ensino médio né, agora eles falaram que não elimina mais né, aí eu consegui. (Novembro/2020)


A exigência da aprovação para a manutenção da bolsa de estudos reafirma o caráter meritocrático do ensino, onde os privilégios são dados àquelas pessoas que teoricamente se esforçam mais. Pode-se pensar também pelo viés do racismo institucional, que não podendo barrar a entrada de pessoas negras e pobres, se utiliza de outras formas para excluí-las desse ambiente, através de uma forma velada de ação. Ao desconsiderar a necessidade material, exclui aquelas pessoas que não tem condições financeiras e que efetivamente necessitam de auxílio financeiro para poder estudar, tornando as vagas nestas instituições inacessíveis para estudantes de famílias de classes mais baixas e reafirmando o caráter elitista e branco das melhores instituições de ensino do nosso país.

Quando questionada sobre as motivações que possui na futura profissão, Med. F (Grupo 1), relatou que sente ter um papel muito importante como mulher negra, com seu black power, dentro da FAMED (Faculdade de Medicina), sendo aluna de Medicina. Ela espera causar para outros uma representatividade que ela não observa no interior do curso.


Med. F: Ah, o que me motiva na Medicina, primeiro é, tipo, ocupar um espaço que pessoas que vem de onde eu venho, que tem as mesmas origens que eu tenho, muitas vezes não tem essa oportunidade e então acho que hoje uma das principais motivações que eu tenho pra continuar seguindo em frente é isso e também no futuro eu poder também abrir portas pra outras pessoas, sabe? Ter pra que outras pessoas tenham essa referência que muitas vezes eu não tenho hoje dentro da faculdade. Então pra mim isso é uma das principais motivações pra mim, é querer ser excelente na minha profissão, na minha futura profissão, ser competente naquilo que eu vou desenvolver futuramente e também abrir portas, não só em todos os sentidos, mas também na questão da representatividade pra outras pessoas, sabe? (Dezembro/2020)


Ao questionarmos sobre quais foram os sentimentos que os/as entrevistados/as tiveram quando da passagem pela banca de heteroidentificação, no Grupo 1, destacou-se o relato de Med. M que trouxe um exemplo de qual tipo de banca ele considera a mais justa para a aferição da veracidade das autodeclarações raciais.


Med. M: Não foi a primeira banca que eu participei, eu é, fiz federal do Paraná e lá também eu acho uma forma bastante, bastante justa que eles fazem lá, que daí você faz a banca antes de ir pro vestibular. 

Isso, faz depois eu acho que é umas duas semanas antes do vestibular, aí você passa pela banca e daí cê já sabe com quem cê tá concorrendo sabe? Sabe que tipo é um processo que é bem cuidado. Aí foi, e essa da federal do Paraná foi um sistema bastante parecido com o da FURG, então, não cheguei a ficar apreensivo assim com, com essa banca de validação. Teve um vestibular que eu fiz, eu fiz federal de Uberlândia. E lá, a banca é, a gente faz o vestibular primeiro e a banca é no ato da matrícula. Só que teve, foi bem em dois mil e dezessete, que foi bastante violado. O, o sistema de cotas. Então, tipo assim, setenta por cento do pessoal que foi pra segunda fase por cotas, foi desclassificado. Porque não estava apto pra concorrer.

E acabou que nessa, gente, pô, ó, a gente que era apto a disputar pela, pela vaga, a gente ficou de fora, porque a gente foi classificado pela nota, porque o pessoal tinha nota maior que a gente. 

Não teve essa correção de notas, sabe? 

Então, assim, não é muito legal, não. Mas o da FURG eu achei bastante interessante. (Janeiro/2021)


Ainda nesse tópico, houve a ocorrência de uma semelhança muito grande entre falas dos dois grupos, o que acabou se destacando. Tanto Psic. F (Grupo 1), quanto Ed. Físic. F (Grupo 2), relataram sobre a dificuldade que tiveram em assumir seu pertencimento étnico-racial, exemplificando na prática, como acontece a questão do colorismo14 e os danos que ele causa à identidade negra no Brasil.


Psic. F: Assim ó, foi bem tenso pra mim porque desde criança assim eu ficava me questionando se eu, quem eu realmente era, daí quando era criança mesmo, eu pintava a minha mãe de preto, o meu pai de branco e eu de amarelo queimado, (risos), aí eu fiquei me questionando, será que eu boto parda, será que eu boto negra? (...) Daí, foi bem tenso assim, foi bem é, ansiogênico pra mim o processo. Mas agora passou né?! (risos) (Dezembro/2020)


Ed. Físic. F: Bah, foi, então, era isso que eu ia falar, foi complicado, porque assim, eu tava, eu não me enxergava como pessoa negra, tá?! E aí, eu, eu tinha cabelo alisado, em dois mil e dezesseis, ainda. Eu tinha cabelo alisado e a minha irmã ahm que me incentivou todo esse processo de transição e aí quando eu comecei a partir do cabelo ahm, do só do cabelo que a gente acha que não é nada, né? Eu comecei, tipo a enxergar muitas coisas diferentes na minha vida, ahm comecei me ver de outro jeito e aí comecei a pensar nisso, né?! (...) E aí eu, elas fizeram um monte de pergunta, eu li ah e ela, não, elas fizeram uma pergunta, eu acho, eu acho que era, poxa, não lembro, mas é porque você, você, o que você se coloca na na cota, é uma coisa assim. (...) E eu peguei, olhei pra câmera e falei, olha, eu falei assim, é o que eu sinto, e só. Foi só isso que eu falei, aí ,a guria ficou, ai, tudo bem, não sei o que. Depois eu fui pro banheiro, eu me matei de chorar. Então, eu não sei. (Novembro/2020)


Ao serem questionados/as sobre o sentimento que tiveram ao ingressarem na graduação, os/as entrevistados/as do grupo 1, em sua maioria, relataram o sentimento de realização. Há uma passagem marcante na fala de Dir. M, que disse ter ficado feliz, pois não era um curso tão acessível, trazendo à tona a questão da dificuldade de ingresso em determinados cursos.


Dir. M: Olha, nas duas oportunidades me senti feliz né, de ter conseguido chegar, né?! Ahm na, entrar na universidade, enfim, agora, quando eu entrei, pra fazer Direito, já eu já tenho trinta e nove, né?! Então, já sou mais velho, né, que o pessoal. E também, foram dois momentos de vida diferentes então. Eu me senti muito bem assim, feliz, também eu consegui também entrar no curso de Direito, que, que é uma coisa, não é tão, tão acessível assim, tão fácil, né?! Realizado, assim, né?! Acho que é esse o sentimento, de chegar ali e tal. (Dezembro/2020)



O único que difere dos demais relatos desse grupo, se deu por meio da fala da entrevistada do curso de Psicologia, a qual colocou que se sentiu uma intrusa ao ingressar no curso, pois segundo ela, não teria estudado o suficiente para isso, o que traz à tona a meritocracia como algo que assombra esta estudante. Não tendo estudado muito, ela se sente não merecedora da vaga.


Psic. F: Considerando que eu tava passando por um processo complicado, foi um sentimento de, de sabe aquela sensação de intruso? Tipo: eu não devia tá aqui, foi, foi esse o sentimento. É, tanto que quando, quando eu fui fazer a matrícula eu tava bem para baixo. Tipo: tá como é que eu passei, eu nem estudei tanto assim, eu não, na verdade eu não estudei pro ENEM, eu só saí do médio e aí fui, e aí fiz, e aí deu. E agora? O que que eu tô fazendo aqui? (Dezembro/2020)



No Grupo 2, duas falas foram bastante potentes. Ped. Quil. F e Ped. F relataram que se sentiram perdidas ao ingressarem na FURG. Esse sentimento, causado tanto pela novidade do ambiente quanto pelo desconhecimento dos assuntos abordados, causou um desconforto, que ficou explícito em suas falas.


Ped. Quil. F: Isso, aí sabe quando tu fica procurando assim alguém mais velho, e eu não achava aí daqui a pouco chegou uma mulher que eu vi que ela era mais velha que eu e eu chegou a me dar um alívio. Mas nisso tudo nenhum preto, tá, aí quando vê chegou uma outra que eu vi que ah de idade ela meio que variava comigo e se sentamos parecido coisa e tal no primeiro dia coisa e tal apresentação pela primeira semana aquela papagaiada, quando chegamos aos finalmentes começamos a ter aula, pensa numa pessoa que chorava todos os dias era eu, porque eu me senti muito, ah fora daquele contexto, eu achava que aquilo não era para mim eu tava 25 anos praticamente sem estudar. Eu terminei o meu médio no, ah no EJA tá, e aí eu vou te falar já do Professor porque eu tenho uma paixão enorme por ele assim, ele chegou no primeiro dia de aula e ele tinha duas aulas conosco né e começou a falar em Marx, em não sei mais o que, e não sei mais o que, e eu assim, ah pensando: quem é essa gente? E eu olhei pra trás e vi que muita gente conhecia e eu sacudi a cabeça dizendo que eu também conhecia mas eu não sabia nem quem era (...) (Dezembro/2020)


Tal fato remete a um estoque de conhecimentos aos quais nem todas as pessoas acessam anteriormente à graduação. Partindo do princípio de que obviamente tiveram acesso a tais conhecimentos, a graduação se torna um ambiente desigual, onde o constrangimento e o desconforto (citado pela entrevistada) podem acabar causando a evasão estudantil. Ela ainda disse que se sentiu um peixe fora d'água, que procurava pessoas semelhantes a ela e não encontrava. Tal situação se mostrou bastante grave para ela que pensou até mesmo em abandonar o curso, pensamento este que foi deixado de lado ao ser acolhida pela PRAE (Pró Reitoria de Assuntos Estudantis).


Ped. Quil. F: Um peixe fora d'água, um peixe fora d'água. Foi como eu te falei, eu cheguei e ficava procurando assim, ó: Cadê as pessoas mais velha, cadê os pretos, só enxergava gente branca, gente nova, meninas, meninas que mais novas que a minha filha (...), tipo na terceira semana eu fui na PRAE e disse que não queria mais, chorava muito, muito, muito. E aí elas disseram assim não, pera aí, vamos sentar e vamos conversar, e conversaram comigo assim, por isso eu digo, cara: elas são fora de série. (Dezembro/2020)


Já a entrevistada Ped. F citou o fato de o curso de Pedagogia ter poucas pessoas negras, mesmo sendo um curso desvalorizado. A fala da entrevistada é intrigante pois, mesmo em um curso desvalorizado15, como a Pedagogia, que tenderia a ser mais acessível às pessoas negras e pobres, ela não se vê representada, o que reafirma o relato de sua colega Ped. Quil. F que também não teve a mesma sensação no curso.

Ped. F: Eu, na verdade, me senti perdida, eu cheguei depois, né?! Fui no, não me lembro em qual chamada que eu entrei, mas eu cheguei bem depois e eu me senti perdida, não só por chegar depois, mas porque era algo novo, eu não conhecia a FURG, nunca tinha visitado a FURG, é quando eu fiz a matrícula foi primeiro contato com a FURG foi meu, foi meu primeiro contato, em si. Me senti perdida, né?! No início assim, tipo, nas aulas, nos assuntos, eu também me identifico muito com esse assunto, né?! De nós, pessoas pretas. E eu acho que foi isso. E aí, na turma, sempre, olha, sempre tive esse esse sentido, assim, tipo, né, poucas pessoas pretas. Mesmo num curso, mesmo sendo um curso desvalorizado. Certo. É isso. (Novembro/2020)


Sobre um fato marcante que tenha ocorrido na universidade, Dir. M (Grupo 1) relatou sobre a apresentação de sua monografia do curso de História (sua primeira graduação) e o quanto aquilo foi motivo de orgulho para a sua família. Tendo sido uma das primeiras pessoas da família a ingressar na graduação, ele relembrou esse momento com muito orgulho. Tal passagem nos faz pensar que, enquanto para famílias brancas há um histórico familiar de gerações anteriores que obtiveram o diploma de graduação, para famílias negras isso é algo novo, levando em consideração o histórico de criação das universidades brasileiras e o seu acesso à população negra.


Dir. M: Nas minhas andanças pela FURG eu acho que quando eu fiz a, quando eu consegui concluir o curso História, pra mim, acho que foi, foi um momento bem legal, assim, quando eu fiz também a minha monografia e, enfim, aí o meu, até minha avó foi ver a minha apresentação da monografia. Eu acho que também foi orgulho assim pra minha família, né?! Que eu também acho. Um dos primeiros a fazer faculdade e tal. E acho que foi, foi isso aí, né? Acho que esse momento foi o mais importante, entendeu? Quando eu concluí a minha monografia e pude apresentar na frente dos meus familiares e tal, mas foi, foi importante. (Dezembro/2020)



Já Med. F (Grupo 1) citou a semana acadêmica de Medicina, que teve por tema as especificidades étnico-raciais na prática médica, o que foi bastante marcante para ela, por se ver representada pelos/pelas profissionais que palestraram, o que não ocorre na faculdade, onde ela não tem nenhum/a professor/a negro/a.


Med. F: Ah, deixa eu ver, ah, teve algumas coisas. Recentemente, a gente fez na semana acadêmica de Medicina, e a semana acadêmica desse ano foi, embora tenha sido tudo online, né, mas foi sobre especificidades étnico-raciais na prática médica. E a gente abordou várias questões relacionadas à população negra e à população indígena também. Então, foi algo bastante marcante pra mim, porque todos os palestrantes da semana acadêmica foram médicos, médicas, negros, pessoas muito capacitadas naquilo que elas tavam fazendo, sabe? Então, pra mim foi um momento muito marcante, de ver muitas pessoas em que eu me reconhecia, que eu me via. E ter uma perspectiva dos profissionais que eu quero ser no futuro. Então, pra mim foi um momento bom assim, marcante, sabe? Porque também na faculdade eu não tenho nenhum, nenhum professor negro. Então, ver outros profissionais já formados no mercado de trabalho, fazendo, foi, acho que foi algo muito bom, assim, uma pena que não foi pessoalmente, né, que foi tudo online mas foi um momento muito bom pra mim. (Dezembro/2020)


Sobre a ausência de professores/as negros/as nas universidades, para Figueiredo e Grosfoguel (2009), embora haja um reconhecimento por parte de alguns pesquisadores e pesquisadoras de que existem poucos docentes negros/as nas universidades públicas federais, eles ainda dão crédito somente ao caráter objetivo dos concursos, o que acaba mantendo a desigualdade estrutural no corpo docente das instituições.


(...) Embora concordem que há poucos professores negros nas universidades públicas federais, muitos acreditam que os resultados dos concursos derivam apenas de avaliações objetivas (constituídas da avaliação do currículo, prova escrita, prova didática e entrevista), em que o mérito e não a pertença etnicorracial, as redes e as conexões acadêmicas e a trajetória importam (FIGUEIREDO e GROSFOGUEL, 2009, p. 231).



A estudante Psic. F (Grupo 1), ao ser questionada do como se sente na universidade, relatou extremo desconforto, fato amenizado agora, durante o período de ensino remoto16. Dores físicas, tensão e ansiedade marcaram a fala da entrevistada que se questionava: será que esse é o meu lugar? Ela ainda cita a impossibilidade de conciliar o curso de Psicologia e trabalho devido ao horário das aulas. Ela relembra de colegas que devido a trabalharem, simplesmente desistiram do curso.


Psic. F: Então, é eu fazia pilates antes da pandemia, daí eu percebia que eu ficava muito, muito, muito extremamente tensa quando eu tava em aula, tipo de sentir os músculos aqui (ombro) contraindo e ficar doendo, doendo, doendo muito. E aí, era bem interessante até, porque depois quando vinha as férias ou até agora na pandemia mesmo, eu não sinto mais a mesma dor que eu tinha aqui nos ombros. E aí sim, até a minha fisioterapeuta falou sobre isso, dessa questão também. E aí tinha tipo também a questão de eu sentir muita dor de estômago quando eu tava lá, aí ficar, é tipo super contraída assim e eu não conseguia prestar atenção nas aulas também por causa desse processo ansiolítico né, e aí enfim é basicamente isso, era assim que eu me sentia, eu me sentia como se eu tivesse sei lá, como se eu não, não devesse estar ali e aí ficava, pensava que todo mundo tava tipo de alguma forma debochando de mim ou qualquer coisa assim (Dezembro/2020).


Sobre como se sente na universidade, a entrevistada Ped. F (Grupo 1) relatou que não se sente “superconfortável” na FURG. Ela argumenta que vem de um lugar que difere dos demais, onde durante a sua criação não teve grandes investimentos culturais que a levassem a estar habituada às linguagens e conhecimentos praticados no ambiente acadêmico.


Ped. F: Eu acho que superconfortável eu não me sinto na verdade, né?! Eu acho que eu venho de um lugar, de uma linguagem, de uma criação de diferente e a FURG em si dentro do, a forma acadêmica que tem tanto de formulação de trabalho, tanto de vocabulário, acredito que isso foi um contato novo que eu tive, sabe? Então, eu acho que, nessa questão, assim, foi o que mais me fugiu a palavra.

Eu que, eu acho assim ó, vem do lado da gente onde a minha mãe, ela não, não teve. Eu sou a primeira da minha família, né?! A ingressar na faculdade, o primeiro da família a entrar pra faculdade. Então, eu venho do lugar onde, sim, eu, a minha mãe sempre prezou pelos meus estudos, né, de eu estar numa escola boa, deu aprender, deu, deu ter contato com, com o, com a escola em si, com a formação, mas eu não tive um ambiente onde eu tinha leitura, onde eu conhecia, falava, tipo, dentro da minha casa, ele é uma minha situação dentro de casa, não foi com bastante leitura de livros, ahm, série essas coisas que televisão, tipo, séries, aquelas da Disney ou de outros lugares, eu não tive, eu não tive essa, esse ambiente, entendeu? Então, eu venho dum, dum, duma origem que não acadêmica, não formalizada, no sentido de que eles pudessem me, ahm alguma coisa prestativa não, né?! Que tudo é prestativo, mas tipo ahm. (Novembro/2020)



Bourdieu (2007) observa que as famílias da classe popular que conseguem que seus filhos e filhas cheguem ao ensino superior se diferem das demais pelo seu nível cultural. Ele ainda fala que os/as herdeiros/as das classes cultas herdam também os saberes ditos de cultura “livre”, que possuem um valor que diferencia os/as estudantes no ensino superior, deixando claro a origem social de cada um/a. Para Bourdieu, os conhecimentos quanto mais afastados dos domínios escolares mais diferenciam os/as estudantes. Ao esperarem por um tipo específico de comportamento, a universidade cria um sentimento de familiaridade com aquelas pessoas que correspondem a tal expectativa e um sentimento de não encaixe nas demais, que não atendendo ao que se espera, sentem-se estranhas, fora do lugar.

A fala de Ed. Físic. F (Grupo 2) retoma a de Med. F (Grupo 1) quando fala sobre a ausência de professores/as negros/as no seu curso. Em um primeiro contato com a universidade, a estudante se mostrou encantada com tudo, porém ao analisar melhor o ambiente, ela percebeu que as pessoas negras não se faziam presentes nas posições de poder, que seriam as de professores e professoras do curso. Ela se deparou com o racismo estrutural, que impede a ascensão das pessoas negras às posições de prestígio.


Ed. Físic. F: Olha, primeiro eu, eu tava, eu tava encantada assim, tava, tava encantada com tudo. Com a universidade e tudo mais. (...) aí depois eu não sei, eu, não sei, acho que as pessoas ficam mais críticas assim, aí foi tomando um jeito diferente. (...) eu não sei te explicar, tipo, não, eu nunca consegui entender que não tem nenhum professor negro no curso de Educação Física, talvez isso tenha me feito pensar e até andar pela FURG, assim. E acho que é isso. (Novembro/2020)



Sobre cursar algo complementar à graduação, a fala de Med. F (Grupo 1) se destaca. Ela relatou que acha importante fazer um curso de inglês, porém entende que seria mais um sacrifício para seus familiares, que são agricultores no interior da Bahia. Ela ainda cita o fato de muitos professores e professoras acharem que todos os/as estudantes falam fluentemente a língua inglesa.

Med. F: Ah, sim, eu, eu preciso fazer inglês, né?! Porque quando a gente entra, os professores acham que, tipo assim, todo mundo morou em Nova Iorque e todo mundo é, é fluente em inglês e fala inglês e todo mundo é, mas não é, né?! São realidades diferentes. Tem colegas que sim, moraram em outros países, falam inglês, fizeram curso de inglês, mas não é o meu caso. Então, quando, muitas vezes eu me deparo com com artigos, com coisas assim, eu sempre tenho que tá recorrendo pro tradutor, né?! Futuramente se eu quiser fazer um mestrado, um doutorado, eu preciso fazer, saber inglês. Então, é uma coisa que futuramente eu penso em fazer.

Agora eu não conseguiria fazer.

Nesse momento mais por questão financeira mesmo, né?! Porque eu teria que disponibilizar um dinheiro pra inscrição, pros livros, essas coisas que provavelmente se eu fosse falar pros meus pais que era algo necessário só que nesse momento.

Sim, eu tava falando que provavelmente, que se eu provavelmente pedisse pros meus pais, eles tentariam fazer o máximo de esforço pra que eu conseguisse fazer, sabe? Mas acho que agora não é o momento mais, mais oportuno. (Dezembro/2020)


Essas questões, como a possibilidade de cursar um novo idioma, de já ter estado em outros países e vivenciado certas experiências que são limitadas às pessoas das classes menos favorecidas, mostra o caráter diferenciador que certos tipos de conhecimentos causam às pessoas quando na graduação. Esse estoque de conhecimento, considerado prévio pelo corpo docente, mostra o que se espera de um/a aluno/a de tal curso; que ele/a seja oriundo/a de um determinado nível socioeconômico ou seja, tenha certos pré-requisitos que muitas vezes, são incompatíveis com as suas condições de vida.

Eng. Comp, M (Grupo 2) ao ser questionado sobre cursar algo complementar à graduação, relatou ter tentado participar do PET (Programa de Ensino Tutorial) do curso, mas que devido às atividades serem realizadas após o horário de aula, se tornou inviável para ele. Tal fato, reitera a interdição feita aos/as estudantes vindos/as das classes menos favorecidas. No caso em questão, pela necessidade do transporte urbano e falta de empatia de alguns/mas professores/as, que esperam que todos possuam meio de transporte próprio, desconsideram que algumas pessoas necessitam do transporte público e que dependendo do horário de utilização, estão mais sujeitos à violência urbana.


Eng. Comp. M: (...) Eu, eu queria ter participado do PET, né?! Que tinha, que tem da Engenharia, né?! É tipo, mas infelizmente eu não, não consegui, né?! Teve uns problemas, né?! Questão de, é de tempo e coisas assim, né?! Tipo horário, né?! Porque eu tenho que voltar no, pegar uma pra voltar pro Cassino tem, ter que pegar uma, um ônibus, né?! Na, lá no paradão, né?! Lá, na parada lá, foi só que voltar de noite lá é muito perigoso e teve uma vez, inclusive, que eu fui com um amigo, né?! Ah, a gente teve um dia que a gente voltou mais tarde e rolou um assalto ali, tá ligado? A gente teve sorte, não ter sido a gente que foi assaltado, a gente correu. E ela tava cheia. Eu falei, bah, nossa, imagina se eu tivesse sozinho? (Novembro/2020)


Ao responderem sobre as suas perspectivas para o futuro, ressaltamos a passagem onde Ped. F relatou que sonha em fazer um mestrado na área da criatividade. Ela planeja prestar concurso público para ser professora do município e diz que se não for aprovada, sente que terá dificuldade em trabalhar nas escolas particulares. Ao ser questionada sobre que tipo de dificuldade, ela respondeu: “Questões raciais, a escola particular preza pela imagem”. O significado do “prezar pela imagem”, que fica subentendido na fala da entrevistada, se refere às escolas particulares, assim como tantas outras colocações no mercado de trabalho, preferirem não contratar pessoas negras para suas vagas de emprego.



Ped. F: Eu pretendia, pretendo fazer um mestrado em criatividade, alguma coisa ligada à criatividade. 

Olha, acredito que dificuldade, a dificuldade tá aí, né?! Mas eu acredito que vai, que eu vou passar alguma dificuldade e eu acredito, acredito que eu possa passar algumas dificuldades. Questões de se eu não passar num concurso, se pô, vou me formar, eu vou tentar ser um concurso, se não tiver concurso aquele ano, eu vou tentar entrar em escolas particulares, né?! Então, eu acredito que eu já tive um, um, um acontecimento, uma escola particular, cheguei a fazer a entrevista e chamaram a minha colega da minha turma não me chamaram, né?! Ficaram de me ligar e tal e. Não, me ligaram. Mas enfim, claro, eu acredito que nesse quesito eu, em escolas particulares, eu vou ter alguma, uma dificuldade, né?!

Questões raciais, a escola particular preza pela imagem. (Novembro/2020)


A repulsa ainda existente contra corpos negros, externalizada na exigência da tal “boa aparência”, muitas vezes colocada nos anúncios de emprego, é uma forma de comunicar indiretamente que somente pessoas brancas se encaixam em determinadas vagas. O padrão de beleza em nosso país ainda é pautado na cor branca, conforme já exposto por Gomes (2020): “Desde a construção da ideologia racista, a cor branca com seus atributos nunca deixou de ser considerada como referencial da beleza humana com base na qual foram projetados os cânones da estética humana (p. 23). Infelizmente no Brasil, mesmo possuindo o melhor currículo, estando bem-vestidas e sendo educadas, as pessoas negras não são escolhidas, conforme já denunciava Gonzalez (2018): “Não adianta serem “educadas” ou estarem “bem-vestidas” (afinal, “boa aparência”, como vemos nos anúncios de emprego é uma categoria “branca”, unicamente atribuível a “brancas” ou “clarinhas)” (Gonzalez, 2018, p. 199).

Ao ser questionada sobre ter presenciado algum caso de racismo na universidade, Med. F (Grupo 1) relembrou que sempre é vista como técnica de enfermagem, nunca como estudante de Medicina.


Med. F: (...) Mas assim, tu perguntou se eu já sofri alguma situação de racismo na faculdade, né?! E a situação que eu me, eu me lembro, primeiro, uma coisa que as pessoas sempre vão achar que eu sou a enfermeira ou a técnica, não estudante de Medicina. Então, isso é uma coisa, né, que acaba, que fica, muitas vezes, fica no inconsciente dos próprios pacientes, né. (Dezembro/2020)



Dir. M (Grupo 1) trouxe a questão do racismo estrutural, que impede o acesso das pessoas negras às posições de prestígio social: “(...) chega só até um ponto ali, não, não vai a mais, né?!”


Dir. M: (...) Eu acho muito que bate, que que hoje se fala muito, é a questão do racismo estrutural, né?! Então, tem pessoas que, que elas não, não, elas vão com essa ideia, né?! De achar que eu, que o racismo tá na, tá nisso que a gente vê, por exemplo, a gente não tem, tem poucos professores negros, né?! Dentro da universidade aí pra tu ver uma estrutura ser diferente, entendeu? E tu chega ali, tá, até agora na graduação tem, tem alguns alunos. Mas, aí, vai, vai subindo os níveis, tu não, não enxerga essas pessoas. Então, isso é estrutura. Aí, a gente vê pessoas que, talvez, que elas entendam que não. Isso não tem a ver, seria até pelo mérito, né?! Talvez as pessoas não tenham se esforçado e não tenham chegado nesse ponto de quem é branco né?! Então, acho que seria nessas, eu vejo o racismo nessa, dessa forma. Não chega, chega só até um ponto ali, não, não vai a mais, né?! (Dezembro/2020)


Ed. Físic. F (Grupo 2) relatou sobre o caráter perverso do racismo recreativo, que se utiliza do humor para mascarar a desqualificação que infringe os sujeitos negros. Ela cita ainda, os olhares diferentes os quais recebe e que ela interpreta como uma das formas do racismo.


Ed. Físic. F: Sobre outras questões, eu já não dentro do curso da FURG, mas eu já vi as pessoas me olhando estranho, eu, eu andando com o W, por exemplo, o nego W, ou com a minha outra, outra colega lá da Letras, que também é uma, uma pessoa negra, retinta. A gente já viu situações assim, entendeu? E mais situações que, tipo, eu tinha passado, tipo, aí, alguém falou alguma coisa diretamente pra mim? Não, mas já falaram prum outro colega que não sei se tu vai entrevistar que é o L. Que eu não sei se ele entrou com cotas, mas tipo eles brincam com uns colegas aí chamam de um monte de coisa e aí eles ficam falando que é brincadeira, o L também ri, entendeu? Então, mas é um bagulho que eu sempre ah falei pro L e pro G, que é um outro cara negro, que eu falei, cara, nada a ver, mano. Nada a ver cês ficar falando isso, entendeu? Chamam de macaco, esse monte de coisa. E aí, eu, eles falam que é brincadeira, tudo mais é, meio que um grupo Bolsominion. E aí eu falo. E é isso, eu acho que tipo ahm a mim, eu, diretamente assim, não, só olhares, entendeu? Olhares, olhares já aconteceu bastante. (Novembro/2020)


Quando questionadas sobre como se sentem por serem alunas cotistas raciais da FURG, dois relatos se destacam dos demais. Psic. F (Grupo 1) e Ed. Físic. F (Grupo 2) citaram a questão do colorismo como fator que as causa incômodo e questionamentos. Elas reconhecem o privilégio que possuem, em comparação a pessoas negras retintas, em uma sociedade racista como a brasileira, por serem mulheres negras de pele clara. Ambas relatam sentirem que estão tirando a vaga de alguém retinto, que sofre maior preconceito e discriminação racial.


Psic. F: Às vezes é, se lá, é de frustração assim, porque parece que, tipo, eu não sou tão escura, mas eu vejo que alguns colegas e algumas pessoas que eu conheço passam por situações muito difíceis, e aí, sei lá, às vezes parece que por, justamente por ser cotista tu não tem o merecimento de tá lá dentro, e muita gente além de te passar essa sensação, literalmente fala isso para ti entendesse? É bem, bem, bem difícil. (Dezembro/2020)

Ed. Físic. F: O meu sentimento é o seguinte, eu fico, pô, tipo, numa linha que depois eu fiquei esse pensamento, que é assim, às vezes, as pessoas negras que tem, ou, sei lá, ou pardas, que tem a pele mais clara, podem tá tirando uma vaga de uma pessoa retinta, né?! (Novembro/2020)


Ped. F (Grupo 2) declarou: “Me sinto oportunista”. Tal resposta pode ser vista como a mais pura exposição do que a branquitude racista pensa a respeito do ingresso via políticas de cotas raciais, e que acabou sendo absorvido pela estudante. Ao justificar sua resposta, ela diz que é porque teve acesso a uma boa educação, remetendo ao fato de que, por ter estudado em escola particular, ela não precisaria de cota, onde subentende-se que as cotas são para quem não conseguiria por seu próprio mérito.


Ped. F: Não sei. Me sinto oportunista (risos). 

Mentira, não sei, não sei.

Mas eu tive, eu tive estudo, eu tive acesso, né?! (Novembro/2020)



Carneiro (2011) enfatiza a necessidade do entendimento de que as cotas, bem como as políticas afirmativas, não desqualificam o grupo negro, ao contrário, elas vêm de encontro ao reconhecimento da condição de credor social dele para com a sociedade brasileira:

A reivindicação de cotas e políticas de ação afirmativas não desqualifica o grupo negro. Ao contrário, representa sua confirmação como sujeito de direitos, consciente de sua condição de credor social de um país que promoveu a acumulação primitiva de capital pela exploração do trabalho escravo, não ofereceu nenhum tipo de reparação aos negros na abolição e permanece lhe negando integração social por meio das múltiplas formas de exclusão racial vigentes na sociedade, das quais o não acesso à educação é uma das mais perversas (CARNEIRO, 2011, p. 102).



A implementação das cotas raciais para o acesso à educação de nível superior, representa uma possibilidade concreta de reparação do dano causado pela escravidão. As cotas permitem que haja uma maior inserção de pessoas negras nas universidades públicas, possibilitando que elas alcancem uma maior qualificação e com isso, maiores possibilidades de ascensão social.



Considerações finais


As vagas reservadas através das cotas raciais representam um enorme avanço em relação às políticas afirmativas em nosso país. Seus resultados demonstram que elas funcionam como mecanismo que propicia uma maior inserção de pessoas negras nas universidades públicas, o que resulta em uma maior democratização do acesso ao ensino superior brasileiro. O discurso da meritocracia, amplamente utilizado como argumento contrário à política de cotas raciais, já não se sustenta, quando se tem estudantes cotistas raciais com um desempenho bastante próximo aos não-cotistas. Fato que demonstra que o caráter meritocrático dos processos seletivos deve ser sim questionado, por ser uma forma de seleção excludente que desconsidera toda a desigualdade socioeconômica existente no Brasil. Anteriormente, a seleção baseada apenas no mérito individual fazia com que as universidades públicas acabassem sendo destinadas a estudantes egressos das escolas particulares, que em geral são estudantes brancos/as, demonstrando a importância de haver uma intervenção à nível de política pública, no que tange ao acesso e permanência de grupos outrora excluídos dessas instituições.

Como toda política pública, a de cotas raciais deve ser acompanhada a fim de se verificar os resultados esperados mediante a sua implementação e analisar as políticas complementares necessárias. Uma das ações importantes a serem tomadas, é a regulamentação a nível nacional das bancas de heteroidentificação, a fim de coibir as fraudes, que prejudicam a obtenção do caráter reparatório da política e auxiliar na parametrização dos procedimentos.

Percebe-se a necessidade do combate ao racismo institucional na FURG, o que é um grande desafio. A falta de representatividade dentro da universidade, seja no corpo docente quanto no discente, bem como as exigências implícitas de um estoque de conhecimento prévio, gera um desconforto e uma falta de familiaridade com o ambiente acadêmico. O sentimento de não pertencimento, causa o sofrimento de alguns dos/as estudantes, e acontece por razão de não se verem representados/as na instituição. O horário das atividades complementares, bem como dos próprios horários de aula em alguns dos cursos, dificulta a permanência e impedem o ingresso de estudantes que precisam trabalhar e estudar, reforçando o caráter elitista desses cursos. A exigência de um bom desempenho acadêmico para o recebimento de bolsas acaba reforçando a necessidade do trabalho aos/as estudantes, algo que acaba dificultando a sua participação nas atividades complementares ou a dedicarem mais tempo às atividades acadêmicas. O/a estudante neste caso é incluído/a apenas formalmente, sendo excluído/a por meio de outros mecanismos que não o racismo escancarado, e sim, o racismo institucional que impede o pleno desfrute da vivência acadêmica.

O colorismo, que causa nos/as estudantes cotistas uma sensação de que estão tirando a vaga de uma pessoa retinta, que infelizmente sofre mais com o racismo, é uma questão que precisa ser discutida e exposta dentro da universidade, pois as cotas raciais não são exclusivas para pessoas retintas, mesmo que elas sejam as maiores prejudicadas nesse contexto de racismo ao qual vivemos.

Cabe ressaltar o aumento da autoestima dos/as estudantes, que ao superarem suas expectativas pessoais, sentem orgulho e felicidade, e fica evidente a potência do efeito psicológico ocasionado pelas conquistas acadêmicas nas suas vidas, que em muitos casos sendo pioneiros/as em suas famílias, servem de exemplo para que outras pessoas enxerguem este como um caminho possível.



Referências


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IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/17270-pnad-continua.html?edicao=24437&t=resultados>. Acesso em: 22 set. 2021.


LEMOS, Isabele. Narrativas de cotistas raciais sobre suas experiências na universidade. Revista Brasileira de Educação. v.22, n. 71, dez, 2017, p. 1-25.


SANTOS, Dyane. Para além das cotas: A permanência de estudantes negros no ensino superior como política de ação afirmativa. 2009. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.


WELLER, Wivian et al. Análise de narrativas segundo o método documentário Exemplificação a partir de um estudo com gestoras de instituições públicas. Revista de Ciências Sociais. v.14, n. 2, mai/ago, 2014, p. 325-340.


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Recebido em: dezembro/2021.

Aprovado em: março/2022.



1 Universidade Federal do Rio Grande – FURG. E-mail: elinarodriguesdeoliveira@hotmail.com

2 Universidade Federal do Rio Grande – FURG. E-mail: rg.severo@hotmail.com

3 Baseado em ALMEIDA (2019), o racismo não é uma patologia e nem um desequilíbrio, mas sim uma normalidade dos arranjos econômicos, sociais, jurídicos e familiares em que vivemos, isto é, da estrutura que nos permeia. Dessa forma, envolto em todas as redes que nos cercam, o racismo estrutural dá a forma, isto é, cita as regras, é uma tradição de conduta social que condiciona a população negra à discriminação.

4 Baseado em ALMEIDA (2019), nas instituições o racismo se dá em virtude de as mesmas estarem inseridas em uma sociedade moldada pelo racismo estrutural. Existindo dentro desse modelo, que tem como norma a discriminação racial, as instituições reproduzem o racismo em sua conduta como sendo algo normal e comum à estrutura social.

5 Bourdieu (2007) fala sobre o gosto como sendo algo que transforma práticas classificadas em classificantes, uma expressão da posição de classe, mostrando um estilo de vida distinto, predicados que devem ser alcançados para se pertencer a um determinado grupo.

6 Segundo Bohnsack, uma construção de tipos praxiológica “(...) começa quando a estrutura de orientação (habitus) é identificável como um padrão homólogo em casos diferentes, quer dizer, quando ela é destituída de sua especificidade” (2011, p. 24).

7 Postura genética se refere à uma interpretação que se distingue da compreensão que normalmente utilizamos no dia-a-dia. Ela procura compreender como surgiu tal comportamento ou modo de pensar.

8 Disponível em: <https://sisu.mec.gov.br/#/relatorio#onepage>. Acesso em 20/11/2020.

9 Companhia Estadual de Energia Elétrica.

10 Loja de móveis usados.

11 Processo através do qual outra pessoa ou instituição define alguém, partindo de suas características visíveis, falando especialmente da avaliação fenotípica de pessoas racializadas (negras e pardas) que concorrem pelo sistema de cotas em vestibulares e concursos públicos. Disponível em: < https://www.dicio.com.br/heteroidentificacao/>.

12 Maria da Graça da Silva Amaral é Técnica Administrativa aposentada da FURG e uma das personalidades ativas do movimento quilombola rio-grandino.

13 Educação de Jovens e Adultos.

14 O colorismo pode ser entendido como uma hierarquização social, onde os sujeitos com a cor de pele mais clara são mais bem tolerados pela óptica racista vigente, e até em alguns casos considerados brancos, enquanto que pessoas mais retintas, sofrem uma maior discriminação devido a possuírem características fenotípicas negras mais acentuadas. (Fonte: autores/as)

15 Pierre Bourdieu (2007) aborda sobre o valor de um diploma ser ligado à sua raridade. Para a conservação das suas vantagens, as frações da classe dominante consideram a restrição de acesso a alguns ramos do ensino superior como uma forma de controlar o valor da força de trabalho, fixá-la, desvalorizá-la e contê-la. O sociólogo coloca que o estado atual de exclusão das grandes massas se dá não no acesso aos níveis de ensino, mas de outras formas, através da repetência, relegação aos ramos de ensino de segunda ordem ou ainda na outorga de diplomas desvalorizados. (Fonte: autores/as)


16Por conta da pandemia ocasionada pelo Coronavírus, a FURG aderiu ao sistema de ensino remoto a fim de evitar a propagação do vírus.

Revista Devir Educação, Lavras, vol.6, n.1, e-523, 2022.

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