O papel
das famílias no Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares.
The role of families in the National
Program for Strengthening
of School Councils
El rol de las
famílias en el Programa Nacional
de Fortalecimiento de los Consejos Escolares.
Adriana
Grabner Corrêa[1]
Letícia
Veiga Casanova[2]
Valéria
Silva Ferreira[3]
Resumo
As
relações escolas-famílias constituem-se a partir de diferentes saberes,
interesses e estratégias, fruto das interações complexas entre diferentes
atores e o governo brasileiro investiu nessa relação a partir da elaboração do Programa Nacional de Fortalecimento dos
Conselhos Escolares. O Programa disponibiliza 12
cadernos que subsidiam oficinas e cursos ofertados aos membros dos Conselhos
Escolares de cada instituição educativa. Esses documentos representam
interesses, jogos de poder e sistemas que estabelecem formas sistemáticas dos
discursos nos documentos da política. Neste texto,
analisamos essas publicações com o intuito de identificar o papel das
famílias e mapear as propostas de participação dos pais. Os resultados apontam
que os cadernos enfatizam a participação da família em vários momentos de forma
indefinida e responsabilizam os pais pelo sucesso na aprendizagem. De uma forma
geral, a relação que se estabelece é assimétrica e os documentos oficiais
legitimam a força da escola em anunciar e determinar como a família deve agir.
Palavras-chave: conselho
escolar; família; participação.
Abstract
The relationships between schools and families
are based on different knowledge, interests and strategies, resulting from the
complex interactions among the actors of schools, families, society and State.
The National Program for Strengthening of School Councils provides 12 books
that subsidize workshops and courses offered by the Program and Secretariats of
Education to School Councils. These documents represent interests, games of
power, and systems that establish systematic forms of discourse in documents of
policy. In this text, we analyze these publications in order to identify the
role of families and map the proposals for parental participation. The results
indicate that the books emphasize the participation of the family in several
moments of indefinite form and hold the parents responsible for the success in learning.
In general, the relationship established is asymmetric and the official
documents legitimize the strength of the school in announcing and determining
how the family should act.
Keywords - school council; family; participation.
Resumen
Las relaciones escuelas y familias se
constituyen a partir de diferentes saberes, intereses y estrategias, fruto de
las interacciones complejas entre diferentes actores, y el gobierno brasileño
invirtió en esa relación a partir de la elaboración del Programa Nacional de
Fortalecimiento de los Consejos Escolares. El Programa dispone de 12 cuadernos
que subsidian oficinas y cursos ofertados a los miembros de los Consejos
Escolares de cada institución educativa. Esos documentos representan intereses,
juegos de poder y sistemas que establecen formas sistemáticas de los discursos
en los documentos de la política. En el texto, analizamos esas publicaciones
con el intuito de identificar el papel de las familias y mapear las propuestas
de participación de los padres. Los resultados apuntan que los cuadernos
destacan la participación de la familia en varios momentos de forma indefinida
y responsabilizan a los padres por el éxito en el aprendizaje. De una forma
general, la relación que se establece es asimétrica y los documentos oficiales
legitiman la fuerza de la escuela en anunciar y determinar como la familia debe
actuar.
Palabras clave – consejo escolar; família; participación
Relações escolas-famílias e os
documentos da política de Educação Básica
As relações escolas-famílias constituem-se
a partir de diferentes saberes, discursos, interesses e estratégias ao longo da
história, fruto das interações complexas e interesses que se estabelecem entre
os atores das escolas, das famílias, da sociedade e do Estado. Essas relações nascem
com a escolarização das crianças, com o processo formal de educação oferecido
pelas instituições de ensino, no contato direto ou indireto dessas duas
instituições responsáveis pela educação das crianças, ou seja, família e
escola. Dessa forma, desde que as crianças começaram a frequentar a escola,
essas relações foram estabelecendo-se e construindo-se. Silva (2003) enfatiza
que as relações escolas-famílias têm a idade da instituição escolar e sempre
houve algum tipo de relação entre elas, “[...] ora mais direta, mais explícita,
mais próxima, mais formal, mais harmoniosa; ora mais indireta, mais implícita,
mais distante, mais informal, mais tensa” (SILVA, 2003, p. 29).
Essas ideias e esses discursos vão
fabricando os sujeitos dessa relação. Essa sujeição valoriza relações mais
próximas entre escolas e famílias e ganha destaque na contemporaneidade. Como
definem Resende e Silva (2016), as relações escolas-famílias constituem um tema
com importância e visibilidade crescentes na sociedade atual, “[...] conquistando
espaços nos meios de comunicação, nas políticas públicas, nos projetos
pedagógicos das escolas, na pesquisa científica sobre educação” (RESENDE;
SILVA, 2016, p. 30). Para Silva, (2003, p. 27, grifo do autor), as
relações escolas-famílias estão na moda e “[...] mesmo para quem não segue de
perto as coisas da educação torna-se relativamente fácil ‘tropeçar’
regularmente em notícias sobre o tema”.
Há um movimento, no Brasil, de
recomendações de ações às escolas e às famílias nos documentos da política para
a Educação Básica, assim como também é visível em várias partes do mundo
ocidental. Nogueira (2005) traz alguns exemplos como: nos Estados Unidos, em
1994, o estabelecimento da colaboração família-escola na oitava meta da
educação nacional; na Inglaterra, nos anos de 1990, a criação de um “contrato
casa-escola”, no qual os pais se comprometiam a assumir a responsabilidade no
plano da assiduidade, da disciplina, da realização dos deveres dos seus filhos;
na França, em 1998, o lançamento de uma campanha nacional pela parceria
família-escola, sendo uma das ações a “semana dos pais na escola”.
No Brasil, não é
diferente. Os documentos da política para a Educação Básica apontam para ações
que incentivam essa relação como: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(BRASIL, 1996), a qual define que os estabelecimentos de ensino terão a
incumbência de articular-se com as famílias e a comunidade. O Programa Nacional
de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (BRASIL, 2004a), que visa garantir a
participação da comunidade escolar e local na gestão das escolas e na melhoria
da qualidade do ensino.
Esses documentos representam interesses,
jogos de forças, poderes e os sistemas que estabelecem as formas sistemáticas,
últimas dos discursos nos documentos da política. Além disso, documentos da
política representam a síntese dessas disputas e definem o lugar que se quer chegar, o tipo de relação entre
escolas e famílias deseja-se e qual o papel delineado para as famílias.
As relações escolas-famílias e o
Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares
No Programa Nacional de
Fortalecimento dos Conselhos Escolares, podemos observar algumas dessas
disputas. Esse Programa foi criado em 17 de setembro de 2004, com a Portaria
Ministerial nº 2.896/2004, por meio da Coordenação-Geral da Articulação e
Fortalecimento Institucional dos Sistemas de Ensino (CAFISE) e do Departamento
de Articulação e Desenvolvimento dos Sistemas de Ensino (DASE). O Programa
conta com a participação de organismos nacionais e internacionais em um Grupo
de Trabalho constituído para discutir, analisar e propor medidas para sua
implementação (BRASIL, 2004a). Fazem parte do Grupo de Trabalho: Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed),
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Os objetivos do Programa
são apresentados no artigo 1º e visam:
I – ampliar a participação das
comunidades escolar e local na gestão administrativa, financeira e pedagógica
das escolas públicas;
II – apoiar a implantação e o
fortalecimento de Conselhos Escolares;
III – instituir políticas de
indução para a implantação de Conselhos Escolares;
IV – promover, em parceria com os
sistemas de ensino, a capacitação de conselheiros escolares, utilizando
inclusive metodologias de educação à distância;
V – estimular a integração entre os
Conselhos Escolares;
VI – apoiar os Conselhos Escolares
na construção coletiva de um projeto educacional no âmbito da escola, em
consonância com o processo de democratização da sociedade;
VII – promover a cultura do monitoramento
e avaliação no âmbito das escolas para a garantia da qualidade da educação.
(BRASIL, 2004a, p. 7).
Podemos verificar
estratégias de ampliar a participação, instituir, apoiar e capacitar os
Conselhos Escolares, promover a cultura do monitoramento e da avaliação,
garantindo a qualidade da educação. Observamos, dessa maneira, criação de
estratégias, procedimentos de condutas, estabelecimento de mecanismos
reguladores (FOUCAULT, 2010, 2015) dos profissionais das escolas e das
famílias.
O portal do Ministério da
Educação[4]
explica que o objetivo do Programa é
fomentar a implantação dos conselhos escolares, por meio da elaboração de
materiais didáticos específicos e formação continuada, tanto presencial quanto
a distância a técnicos das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação,
assim como para os conselheiros escolares. Dessa forma, a elaboração do
material pedagógico, a formação continuada presencial e a formação continuada a
distância são os três pilares que estruturam esse Programa.
O material didático é
composto por 12 cadernos. Os 5 primeiros foram elaborados no ano de 2004, são
eles: Caderno 1 – Conselhos Escolares:
Democratização da escola e construção da cidadania; Caderno 2 – Conselho Escolar e a aprendizagem na escola;
Caderno 3 – Conselho Escolar e o respeito
e a valorização do saber e da cultura do estudante e da comunidade; Caderno
4 – Conselho Escolar e o aproveitamento
significativo do tempo pedagógico; Caderno 5 – Conselho Escolar, gestão democrática da educação e escolha do diretor.
Em 2006, foram lançados
mais 5 cadernos: Caderno 6 – Conselho
Escolar como espaço de formação humana: círculo de cultura e qualidade da
educação; Caderno 7 – Conselho
Escolar e o financiamento da educação no Brasil; Caderno 8 – Conselho Escolar e a valorização dos
trabalhadores em educação; Caderno 9 – Conselho
Escolar e a educação do campo; Caderno 10 – Conselho Escolar e a relação entre a escola e o desenvolvimento com
igualdade social. Em 2008 e 2009, foram lançados os últimos cadernos:
Caderno 11 – Conselho Escolar e Direitos
Humanos; e Caderno 12 – Conselho
Escolar e sua organização em fórum.
Os Cadernos tratam de
forma prescritiva sobre o significado do Conselho na gestão da escola. Eles
definem sua função, descrevem as legislações que o sustentam, seu modo de
funcionamento e atuação, como o acompanhamento da prática educativa e do tempo
pedagógico. Sobre a definição da função do Conselho Escolar, o site do Ministério
da Educação[5]
descreve que:
Aos
conselhos escolares cabe deliberar sobre as normas internas e o funcionamento
da escola, além de participar da elaboração do Projeto Político-Pedagógico;
analisar as questões encaminhadas pelos diversos segmentos da escola, propondo
sugestões; acompanhar a execução das ações pedagógicas, administrativas e
financeiras da escola e mobilizar a comunidade escolar e local para a
participação em atividades em prol da melhoria da qualidade da educação, como
prevê a legislação. (BRASIL, 2016, s/p).
Os
cadernos tratam do Conselho Escolar como exercício de poder pela participação e
retratam, no Caderno Instrucional: uma
estratégia de gestão democrática da escola pública, que:
Os conselhos escolares na educação
básica, concebidos pela LDB como uma das estratégias de gestão democrática da
escola pública, tem como pressuposto o exercício do poder, pela participação,
das comunidades escolar e local [...]. O conselho existe para dizer aos
dirigentes o que a comunidade quer da escola e, no âmbito de sua competência, o
que deve ser feito. (BRASIL, 2004b, p. 36-37).
Há, nesses cadernos, estratégias que
orientam para a participação, a discussão, a construção coletiva do que a
comunidade quer da escola e o que deve ser feito. Mas pergunta-se: como é
definido o papel das famílias nos cadernos do Programa Nacional de
Fortalecimento dos Conselhos Escolares? Quais são as propostas de participação?
Verificamos que esse Programa fortalece o
discurso da participação e da gestão democrática marcada desde a Constituição
Federal de 1988. Constituição esta que garantiu na legislação a busca pelos
movimentos sociais ao direito à participação e o princípio da gestão
democrática na educação (BRASIL, 1988).
Com a promulgação da Constituição Federal
em 1988, definiu-se, entre outras questões, o princípio da gestão democrática
para educação. É importante esclarecer, porém, que as leis são as formas
terminais do poder (FOUCAULT, 2010) e, dessa maneira, antes da definição do que
seria a gestão democrática na Constituição, houve disputas, tensões, jogos de
forças ao definir tal princípio. Como esclarece Foucault (2015, p. 138), “[...]
cada luta se desenvolve em torno de um foco particular”.
Adrião e Camargo (2002) apontam a
existência de duas principais posições, responsáveis pelos embates ocorridos
nas comissões encarregadas da discussão desse processo:
O primeiro setor refere-se ao grupo
identificado com as posições do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública
constituído por entidades de caráter nacional cujo posicionamento, no tocante à
gestão da educação e da escola, refletia a defesa do direito à população
usuária (pais, alunos e comunidade local) de participar da definição das
políticas educacionais às quais estariam sujeitos [...]. O segundo setor, ligado
aos interesses privados do campo educacional e composto, tanto por
representantes do chamado empresariado educacional, quanto por representantes
ligados às escolas confessionais, contrapunha-se a tal formulação. Aqui, o grau
‘aceitável’ de participação resumia-se à possibilidade de famílias e educadores
colaborarem com direções e/ou mantenedoras dos estabelecimentos de ensino
(ADRIÃO; CAMARGO, 2002, p. 73, grifo dos autores).
Os embates e as disputas estabeleceram-se
no sentido de garantir na lei a ideia de indução para as modificações das
práticas sociais. O embate desse momento resultou na aprovação da seguinte
redação: “Artigo 206 – O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios: [...]; VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei”
(BRASIL, 1988, p. 137-138).
Adrião e Camargo (2002) relatam que foi
acrescentado o adjetivo público à
palavra ensino e, dessa forma, excluiu-se a aplicação da gestão democrática ao
ensino privado. Com a expressão na forma
da lei, exige-se uma legislação complementar para que seja executável. Essa
redação não foi somente uma conquista por parte dos segmentos comprometidos com
a democratização da gestão da educação, mas também “[...] representou uma
conquista parcial, na medida em que teve sua abrangência limitada e sua
operacionalização delegada a regulamentações futuras” (ADRIÃO; CAMARGO, 2002,
p. 74).
Notamos a ideia de gestão democrática na
participação de representantes na escola, do aumento da participação dos pais.
Tudo isso construído nas relações entre movimentos sociais e Estado, embates e
ajustes, visando estabelecer condutas de escolas e famílias. Após a
Constituição de 1988, outras leis, outros decretos, documentos, programas,
materiais de orientações foram construídos. Outros embates, outras identidades,
outros conceitos e outras conduções foram estabelecidas para a relação entre
escolas e famílias, assim como para a gestão das escolas e dos Conselhos
Escolares. Diante disso, consideramos importante investigar o papel da família
delineada no Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares.
Cury (2008, p. 199) relata que a
Constituição Federal incorporou, em seu texto, “[...] os clamores dos
educadores que, exigindo a democratização da sociedade e da escola pública
brasileiras, buscaram traduzi-los em preceitos legais” (CURY, 2008, p. 199). E
a lógica democrática, reivindicada pelos movimentos sociais e aferida na
constituinte, “[...] refletia a defesa do direito à população usuária (pais,
alunos e comunidade local) de participar da definição de políticas
educacionais” (ADRIÃO; CAMARGO, 2002, p. 72). Como define Paro (2006), devemos
entender a democratização não apenas como escola para todos, como
universalização da educação, mas precisamos compreendê-la no sentido de:
[...] democratização das relações
que envolvem a organização e o funcionamento efetivo da instituição escola.
Trata-se, portanto, das medidas que vêm sendo tomadas com a finalidade de
promover a partilha do poder entre dirigentes, professores, pais, funcionários,
e de facilitar a participação de todos os envolvidos nas tomadas de decisões
relativas ao exercício das funções da escola com vistas à realização de suas finalidades.
(PARO, 2006, p. 1).
A Lei de Diretrizes e
Bases 9.394/96 também enaltece esse discurso. Observamos que, nos artigos 3º e
14 da LDB 9.394/96, a gestão democrática é um dos princípios do ensino público.
A Lei salienta que os sistemas de ensino definirão as normas da gestão
democrática conforme os princípios de participação dos profissionais da educação
na construção do projeto político pedagógico da escola e da participação das
comunidades escolar e local em conselhos escolares (BRASIL, 1996).
Paro (2002, p. 80)
esclarece que o artigo 3° repete a fórmula da Constituição Federal e o artigo
14 “[...] faz supor, que, em termos de legislação federal, esta lei esgota o
assunto”, pois apenas define a participação das famílias nos órgãos de gestão,
como o conselho escolar. Muranaka e Minto (2001, p. 63) também concordam que,
apesar de os conselhos escolares serem organismos reivindicados pelos setores
organizados da sociedade civil no período de democratização do país, “[...] a
redação do artigo 14 da LDB posterga a definição dos espaços de participação
[...]”.
A partir da LDB 9.394/96
outros documentos foram elaborados para a política de Educação Básica, e alguns
deles definem ideias e conduzem condutas para as relações entre escolas e
famílias, como os cadernos do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos
Escolares (BRASIL, 2004a). Dessa forma, objetivamos mapear as propostas de
participação das famílias nos documentos do Programa Nacional de Fortalecimento
dos Conselhos Escolares e, em especial, os tipos de
ações indicados por esses documentos. Identificamos o papel das famílias nessas
ações e analisamos as concepções de participação das famílias abordadas nesses
documentos.
Assim
sendo, buscamos compreender o sentido e o significado das intencionalidades das
políticas educacionais. Para Ghedin e Franco (2008,
p. 72), “[...] a pesquisa em educação possui uma particularidade
incomparável com as outras ciências, especialmente porque os objetos das
ciências da educação e seus métodos implicam processos diferenciados de acesso
ao real”. Como caminho metodológico,
utilizamos a “análise documental” definida por Bell (1997) quando os documentos
são o alvo do estudo. Para Flores
(1994), a análise documental consiste na identificação de unidades de
significado em um texto e na investigação das relações entre elas e o todo. O
autor ainda complementa que esse tipo de análise é constituído por dois
momentos: recolha e análise dos documentos.
Para
o momento de recolha, realizamos uma busca no site do Ministério da Educação.
Os documentos, 12 cadernos do Programa Nacional de Fortalecimento dos
Conselhos Escolares, foram salvos em PDF. A escolha por esse aplicativo
baseou-se nas possibilidades que a ferramenta “localizador” oferece: mapear os
descritores em todo o texto. Para o mapeamento e o processo analítico,
utilizamos os descritores: pais e
famílias, no singular e no
plural. A escolha deu-se por acreditarmos que esses termos nos dão acesso aos
extratos dos documentos nos quais encontramos a discussão acerca do objeto
pesquisado. Outro fator importante é que os descritores, ao serem
contabilizados manualmente, permitem ao pesquisador observar os contextos em
que eles aparecem no documento. Assim, é possível identificar se “famílias” e
ou “pais” estão citados nesses documentos e permite analisar qual o lugar
definido para eles, assunto que abordamos a seguir.
O lugar das famílias no Programa
Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares
Entendemos
que a família tem lugar de destaque na escolarização dos seus filhos e são as
escolas que cultivam a parceria com elas.
Acreditamos que uma relação família-escola se pauta no diálogo e na
escuta atenta e sensível. Essa relação é permeada de complexidade e de tensão,
por conta das diferenças entre a cultura escolar e as diversas culturas das
famílias (LAHIRE, 1997). Compreendemos,
também, que os documentos das políticas, como os cadernos do Programa Nacional
de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, são pensados e elaborados a partir
de uma rede de influências que estão atravessadas de embates, interesses, jogos
de forças para marcar um modo específico de participação das famílias nos
Conselhos Escolares.
Um
desses modos é descrito pelo discurso da gestão democrática e pela
participação, mas observamos nos dados que esses modos não estão definidos
claramente: O que seria participar? Como famílias podem participar? O que seria
participar de uma gestão democrática?
O
caderno 2, Conselho Escolar e
aprendizagem na escola, por exemplo, defende que “[...] o papel do Conselho
Escolar é o de ser o órgão consultivo, deliberativo e de mobilização mais
importante do processo de gestão democrática” (BRASIL, 2004c, p. 20). Já o
caderno 5, Conselho Escolar, gestão
democrática e escolha do diretor, esclarece que é necessário um amplo
trabalho de mobilização e conscientização “[...] para que estes [todos os
envolvidos - dirigentes escolares, professores, demais funcionários, estudantes
e pais de estudantes] percebam a importância de participar da elaboração e da
construção cotidianas dos projetos da escola” (BRASIL, 2004d, p. 20).
O
princípio da gestão democrática preconiza o compartilhamento do poder na tomada
de decisões dos processos educativos, tanto nas questões pedagógicas,
financeiras quanto nas administrativas. Para tanto, é necessário a condição de
não hierarquia, de partilha, de facilitar a participação de todos os envolvidos
como dirigentes, professores, pais e funcionários (PARO, 2006). Isso seria para
uma construção coletiva da educação mais macro e, sobretudo, para a construção
dos contextos micro e locais de educação.
Diante
desse cenário idealizado, há contextos reais das traduções dessas políticas. As
intenções das políticas podem ganhar novos sentidos na prática, porém, segundo
Ball (2014), há dispositivos que colaboram para a criação de novos discursos e
projetam novas realidades, para os quais devemos ficar atentos. Neste artigo,
apresentamos o contexto documental do Programa Nacional de Fortalecimento dos
Conselhos Escolares na perspectiva das novas formas de sujeição e de esquemas
de conhecimento que aparecem a partir dos dispositivos didáticos do programa em
questão (FOUCAULT, 2010).
Ball
(2014) fala-nos da performatividade para análise da escrita de documentos. O
autor diz que esse conceito vai além de uma avaliação de sistemas de gestão de
desempenho. Para o autor, incide no entendimento do que ele faz na subjetividade
das pessoas, induzindo-as a tornarem-se mais efetivas, sentirem-se culpadas ou
inadequadas no que fazem. Como define Ball (2010, p. 38, grifo do autor), a
performatividade é “[...] uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação, e
mesmo, tal como define Lyotard, um sistema de ‘terror’, sistema que implica
julgamento, comparação e exposição, tomados respectivamente como formas de
controle, de atrito e de mudança”.
Aqui,
especificamente, analisamos os 12 cadernos do Programa Nacional de Fortalecimento
dos Conselhos Escolares e as ações previstas para as famílias, a sua performance esperada nesses documentos.
No Quadro 1, que segue, apresentamos as ações e começamos a identificar que o
papel das famílias é de partícipe, mas os próprios cadernos não definem como
são as ações de participação, de que forma as famílias podem participar.
Quadro
1 – As famílias no Conselho Escolar e as ações de participação
Cadernos |
Ações
previstas |
Caderno
Instrucional – Conselhos escolares:
uma estratégia de gestão democrática da
educação pública |
Participação
na construção do Projeto Político Pedagógico (PPP); participação para
conhecer os estudantes; atuação da família e seus respectivos papéis. |
Caderno
1- Conselhos escolares: democratização
da escola e construção da cidadania |
Partícipes
da prática educativa; educadores; divisão de responsabilidade pela
aprendizagem escolar. |
Caderno
2 – Conselho Escolar e a aprendizagem
na escola |
Educação
familiar; família como uma entidade participante da comunidade. |
Caderno
3 – Conselho escolar e o respeito e a
valorização do saber e da cultura do estudante e da comunidade |
Família
como participante da organização escolar, em busca de atender o direito dos
estudantes por educação de qualidade; família como “recebedora” de informação
sobre possibilidades ofertadas aos estudantes. |
Caderno 4 – Conselho escolar e o aproveitamento significativo do tempo pedagógico |
Família com integrante da escola; atores sociais;
participação cotidiana; reunião mensal para discussão de temas diversos
ligados à educação; participação na associação de pais; decisões partilhadas
(calendário, eventos, avaliação educacional, planejamento escolar). |
Caderno
5 – Conselho escolar, gestão
democrática e escolha do diretor |
Dever
de educar; contribuem na formação, mas não respondem pela formação na
educação básica necessária nos tempos atuais; problemas: falta de
participação, de consciência da importância do processo educativo;
envolvimento nos processos de avaliação e reprogramação das ações. |
Caderno
6 – Conselho escolar como espaço de
formação humana: círculo de cultura e qualidade da educação |
Dever
de tomar as providências para a matrícula; conhecer a legislação atual;
discussão da legislação e recursos financeiros; associações de pais para
recebimento do PDDE. |
Caderno
7 – Conselho escolar e o financiamento
da educação no Brasil |
Participar
do planejamento participativo. |
Caderno 8 – Conselho escolar e a valorização dos trabalhadores em educação |
Valorizar os trabalhadores da educação básica; construir
uma escola cidadã. |
Caderno 9 – Conselho escolar e a educação do campo |
Participar da associação de pais; famílias são atores
sociais; participar não é cumprir tarefas determinadas pela escola; Escola de
campo: ciclo de pais e mestres (ensinar técnicas de cultivo e preparo de solo
ou contribuir com a merenda escolar). |
Caderno 10 – Conselho Escolar e a relação entre a escola e o desenvolvimento com
igualdade social |
Colaboração; zelar pela frequência escolar; manter as
famílias atualizadas sobre o desempenho escolar; atendimento a famílias em
situação de pobreza. |
Caderno 11 – Conselho Escolar e direitos humanos |
São atores sociais e sujeitos de direitos – a exercer
cidadania ativa no cotidiano da escola; responsabilidade de manutenção
escolar; formação de seres humanos. |
Caderno 12 - Conselho Escolar e sua organização em fórum |
Participação da assembleia geral; participação nos fóruns;
atuação junto à comunidade; responsabilidade de conduzir a luta por melhoria
da qualidade física da escola; pais organizados. |
Fonte: Elaborado pelas autoras com base
nos dados dos cadernos do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos
Escolares.
Os cadernos enfatizam a “participação da
família” em vários momentos de forma não muito clara, como: participar da
associação de pais, participar de assembleia geral, participar das decisões,
participar da construção do Projeto Político Pedagógico (PPP). O que se observa
é um movimento de conduzir a participação das famílias em um formato em que a
escola define em que ações as famílias devem participar. Não é uma relação
construída coletivamente, cuja participação é negociada e pensada em conjunto.
Observamos, aqui, um aspecto que define o
papel das famílias não como colaboradoras no pensar coletivamente a educação e
a participação, mas as famílias tornam-se agentes passivos, executando o que
foi determinado pela escola. Há, dessa maneira, um lugar reservado às famílias para execução de algo estabelecido e não
um lugar de encontro, discussão, diálogo, construção coletiva do que se
pretende. Ferrarotto e Malavasi (2016) também reconhecem que os documentos da
política colocam as famílias apenas como complementares às ações da escola.
O discurso é de participação, mas, de uma
forma geral, a relação que se estabelece é assimétrica, ou seja, os documentos
oficiais legitimando a força da escola em anunciar e determinar como a família
deve agir. O que se percebe é uma participação unilateral. Há uma tentativa de controle velado, no qual se reúnem técnicas de
vigilância calculada que deveria ser exercida pelos conselhos escolares, mais
sobre os resultados do que os processos. A família entra como coadjuvante desse
processo para legitimar as ações previstas para esse conselho.
Os documentos citam que o papel da família é
de participação e apontam que devem colaborar com o Projeto Político
Pedagógico, com a organização escolar ou associação de pais, por exemplo, o que
de fato não sabemos se isso acontece. Contudo, o que podemos concluir com os
dados é que a participação não é posta como algo negociado, construído
coletivamente, um processo em espiral aberto (BONDIOLI; SAVIO, 2013).
Os
documentos também enaltecem a responsabilidade de as famílias conduzirem a luta
pela qualidade da educação. Na apresentação dos 12 cadernos do Programa,
destaca-se que “[...] este é um importante passo para garantir a efetiva
participação das comunidades escolar e local na gestão das escolas,
contribuindo, então, para a melhoria da qualidade social da educação ofertada
para todos” (BRASIL, 2004e, p. 11). Entretanto, os cadernos não indicam os
caminhos e as ferramentas para tal luta e nem abrem o diálogo para busca dessa
problemática e para o consenso sobre o que se entende por qualidade.
É
importante reconhecermos que a qualidade se traduz como um conceito relativo e
baseado em valores (MOSS, 2002). Esse processo de definir qualidade oferece
oportunidades para compartilhar, discutir e entender valores, ideias,
conhecimentos e vivências. Moss (2002) ressalta que esse processo deve ser
participativo e democrático, envolvendo grupos diferentes, que incluem alunos,
famílias e profissionais de forma dinâmica, contínua e que requer sempre
revisões. Dourado e Oliveira (2009) também apontam que:
A discussão acerca da qualidade da
educação remete à definição do que se entende por educação. Para alguns, ela se
restringe às diferentes etapas de escolarização que se apresentam de modo
sistemático por meio do sistema escolar. Para outros, a educação deve ser
entendida como espaço múltiplo, que compreende diferentes atores, espaços e dinâmicas
formativas, efetivado por meio de processos sistemáticos e assistemáticos.
(DOURADO; OLIVEIRA, 2009, p. 203).
A
qualidade então não se reduz a questões puramente técnicas e gerenciais. Nesse
contexto, para Campos e Haddad:
[...] a obtenção de consensos nessa
área será sempre provisória, pois a qualidade é um conceito socialmente
construído. Depende do contexto, fundamenta-se em direitos, necessidades,
demandas, conhecimentos e possibilidades que também são determinados
historicamente, sendo, portanto, resultado de processos que, em uma sociedade
democrática, supõem constantes negociações e contínuas revisões. (CAMPOS;
HADDAD, 2005, p. 112).
Reiteramos que a qualidade é um conceito
socialmente construído, dependente do contexto em que a sociedade está inserida
e, em uma perspectiva democrática, deveria ser construída coletivamente a
partir das relações entre escolas, famílias e comunidade, com um pleno respeito
à cultura local dos alunos.
Precisamos atentar que, para além de todos
os documentos mobilizarem e incentivarem a participação das famílias, a maioria
induz para ações que se fundamentam em valores que transformam as relações
plurais, complexas, de participação, de negociação, de reflexão e de construção
coletiva em uma relação simplista, que concentra os sujeitos no monitoramento e
no gerenciamento de metas já estabelecidas.
Considerações finais
Neste texto, discutimos que as relações
escolas-famílias se constituem a partir de diferentes saberes, discursos,
interesses e estratégias ao longo da história, fruto das interações complexas
que se estabelecem entre os atores das escolas, das famílias, da sociedade e do
Estado.
Observamos que tanto no Brasil quanto no
mundo há um movimento nos documentos das políticas educacionais que valoriza as
relações escolas-famílias mais próximas e incentiva para que pais e mães
participem da vida escolar dos seus filhos. Essas ideias e esses discursos
definem o lugar das famílias, das escolas e fabricam os sujeitos dessa relação.
Esses documentos representam interesses,
jogos de forças, poderes e os sistemas que estabelecem as formas sistemáticas,
últimas dos discursos nos documentos da política. Além disso, documentos da
política representam a síntese dessas disputas e definem onde se quer chegar,
que tipo de relação entre escolas e famílias deseja-se e qual o papel delineado
para as famílias. Esses documentos são leis, decretos, programas, materiais de
orientação e divulgação que são elaborados a partir de elementos comuns. Esses
elementos sustentam-se a partir de valores e interesses e contribuem para a
construção das ideias sobre as relações entre escolas e famílias, criam
discursos, geram efeitos e sentidos nas pessoas, definem as opções disponíveis
e o lugar social dos sujeitos na relação com a escola.
A partir da LDB 9.394/96, outros
documentos foram elaborados para a política de Educação Básica e, alguns deles,
definem ideias e conduzem condutas para as relações entre escolas e famílias,
como o Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares (BRASIL,
2004a). O Programa visa garantir a participação da comunidade escolar e local
na gestão das escolas e na melhoria da qualidade do ensino e define o lugar das
famílias na relação com a escola.
Por mais que os cadernos do Programa
incentivem para a participação das famílias e fortaleçam o discurso de uma
gestão democrática em busca da educação de qualidade, esses documentos
estipulam um lugar secundário às famílias. Não há o movimento de criação de
espaços de discussões, reflexões e construções coletivas sobre o que é
qualidade, participação na educação.
Concordamos
com Ferraroto e Malavasi (2016) quando ressaltam que, nos documentos da
política, a relação entre família-escola é apresentada de forma simplista e
reducionista. Para as autoras, essa relação teria como principal objetivo a
formação integral das crianças e não necessita apontar culpados ou estabelecer
funções criando um clima de rivalidades e individualidades. Dessa forma,
ressaltamos a indicação de Silva (2003) de que a família tem responsabilidades
individuais, mas, na escola, as suas ações devem ser coletivas para construção
de consensos e decisões conjuntas.
Como explanam Saraceno e Naldini (2003), a família é objeto de regulação do Estado, seja direta ou indiretamente e revelam que “[...] a intervenção do Estado na família data do nascimento do próprio Estado moderno” (SARACENO; NALDINI, 2003, p. 299). As autoras reforçam que o Estado determina padrões, distribui recursos, atribui direitos e deveres às famílias e às escolas. Nos dados recolhidos dos cadernos do Programa de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, os direitos e os deveres referem-se às ações de execução de algo decretado. Cabe às famílias a execução, um lugar no qual a pluralidade, a cooperação e o compartilhamento de ideias não é valorizado. Como defende Foucault (2012, p. 43), quando se refere às grandes estratégias de poder como o ato de governar e a elaboração dos documentos da política, “[...] não se sabe ao certo quem tem o poder, mas se sabe quem não o tem”.
Enfim, a família é convocada, parece ter voz, mas pouco sabemos ainda o quanto e como são ouvidas de fato no processo de gestão democrática. No Caderno 9, temos uma exceção, a qual trata da Educação do Campo. Nesse Caderno, sugere-se que a família seja convocada para o ensino de técnicas da cultura agrícolas. Aqui encontra-se a valorização do conhecimento familiar no currículo escolar. O Caderno recomenda a participação da família inclusive no planejamento das atividades escolares, em uma preocupação com a educação coletiva das crianças. Essas informações são encontradas somente nesse Caderno, o que é instigante e nos levará a novas investigações.
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Recebido em:
setembro/2021.
Aprovado em:
Novembro/2021.
[1] Formada em Psicologia pela Universidade
do Vale do Itajaí – UNIVALI–
Itajaí (SC), Brasil. E-mail: adrianagrabnercorrea@gmail.com
[2] Doutora em Educação pela Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI e pesquisadora do grupo de pesquisa Contextos da Educação da Criança
na mesma Universidade – Itajaí (SC), Brasil. E-mail: leticia.casanova@univali.br
Orcid:https://orcid.org/0000-0002-7548-6565 - Lattes: http://lattes.cnpq.br/3476597266431261
[3] Doutora em Educação
(Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é
professora pesquisadora permanente do Programa Pós-Graduação em Educação da UNIVALI
(Mestrado e Doutorado) e lidera o grupo de pesquisa Contextos da Educação da
Criança. Coordena o Programa de Pós-Graduação em Educação, Mestrado e Doutorado
da UNIVALI– Itajaí (SC), Brasil. E-mail: v.ferreira@univali.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3990-7182
- Lattes: http://lattes.cnpq.br/2155129322801874
[4] Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/programa-nacional-de-fortalecimento-dos-conselhos-escolares>.
Acesso em: 18 dez. 2015.
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