Ensino profissional e formação
docente: letramentos e multiletramentos em sala de aula
Professional
education and teacher training: literacies and multiliteracies in classroom
Educación profesional
y formación docente: alfabetizaciones y multialfabetización en el aula
Paula Almeida Morato De Laet[1]
Rodrigo Avella Ramirez[2]
Alice Turibio Narita[3]
Resumo:
O
distanciamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus demonstra que as
habilidades de letramento, bem como as diversas novas formas de ler e escrever, ou
seja, os multiletramentos, tornaram-se essenciais para os processos comunicacionais
profissionais. Assim, a presente pesquisa tem por objetivo investigar como as
habilidades de letramentos e multiletramentos são conduzidas, e se de forma
crítica, pelos professores especialistas do Ensino Técnico. O método utilizado
foi descritivo com abordagem qualitativa com os dados aferidos por meio de
entrevistas com professores de disciplinas técnicas em uma escola de Ensino Técnico.
Ao final desse processo, a pesquisa apontou a necessidade de formação periódica
de professores especialistas do Ensino Técnico para os letramentos e
multiletramentos a fim de propiciar uma maior desenvoltura e
criticidade na apropriação da linguagem de seus alunos, bem como a realização
de propostas de trabalhos interdisciplinares envolvendo professores da área
de língua portuguesa e professores de especializações técnicas.
Palavras-chave: Educação Profissional; Letramentos Múltiplos; Formação de
Professores e Leitura e Escrita.
Abstract:
The social distance imposed by the new coronavirus pandemic demonstrates that literacy skills, as well as the various new ways of reading and writing, i.e., multiliteracies have become essential for professional communication processes. Thus, in this research, it aims to investigate how literacies and multiliteracies skills are conducted and if it is critically conducted by teachers specializing in technical education. The method used is descriptive as a qualitative approach, with the data obtained through interviews with teachers of technical subjects in a technical school. At the end of the process, the investigation required the periodic teachers training in specialized areas in technical education for the literacies and multiliteracies, in order to promote greater resourcefulness and criticality in the appropriation of the language of their students, as well as the realization of proposals for interdisciplinary works involving teachers of Portuguese language and teachers with technical specializations.
Keywords: Professional
Education; Multiple Literacies; Teacher Education; Reading and Writing.
Resumen:
La distancia social que fue impuesta por la pandemia del nuevo coronavirus demuestra que la alfabetización, así como las diversas nuevas formas de leer y escribir, o sea, multialfabetizaciones, se han convertido en imprescindibles para los procesos de comunicación profesional. Por lo tanto, este proyecto tiene como objetivo investigar cómo se llevan a cabo las habilidades de alfabetización y multialfabetización, y si es crítico, por profesores especialistas en educación técnica. El método utilizado fue descriptivo con enfoque cualitativo con datos obtenidos por medio de entrevistas a profesores de disciplinas técnicas en una escuela técnica. Al final de este proceso, la investigación señaló la necesidad de la formación periódica de profesores especialistas de educación técnica para alfabetizaciones y cursos múltiples con el fin de brindar mayor ingenio y criticidad en la apropiación del lenguaje de sus alumnos, así como la implementación de propuestas de trabajo interdisciplinar involucrando a profesores del área de lengua portuguesa y profesores con especialización técnica.
Palabras clave: Educación Profesional; Alfabetizaciones Múltiples; Formación de Profesores y Lectura y Escritura.
Introdução
A leitura e escrita para prática social dá-se o nome de
letramento e, a partir desse conceito básico de letramento, surgem outros
letramentos, como letramento visual (leitura de imagens) e numeramento (prática
de conceitos matemáticos). Na atualidade, com a proliferação de
multiplataformas propiciadas com a revolução da Internet, surge também a noção
de multiletramentos, diretamente ligada às habilidades necessárias para prática
social do indivíduo nas multiplataformas que surgem a todo momento. Nesse
cenário, ler e escrever tornaram-se ainda mais basilares para os indivíduos
transitarem nas diversas tecnologias necessárias para o desempenho,
principalmente, profissional.
A problemática da leitura e escrita é muito ampla para
realização de uma pesquisa. Neste artigo, delimitou-se o estudo para
investigação da percepção que professores especialistas em áreas técnicas
possuem sobre letramentos e multiletramentos em sala de aula. Em vista disso, a
questão desta pesquisa é: o professor de disciplinas do núcleo técnico
considera os letramentos e multiletramentos como ferramentas para aprimoramento
de sua atuação em sala de aula?
Em pesquisa realizada no
portal CAPES/MEC[4],
ao empregar as palavras-chave “letramento”, “educação
profissional”, “educação técnica”, “ensino profissional”, Laet et al (2019) indicam
que nenhum dos artigos localizados tratavam da formação de professores de áreas
técnicas para os letramentos em ensino profissional. Após esse levantamento, os
autores seguiram o mesmo procedimento para buscar os termos “multiletramentos”,
“educação profissional”, “educação técnica”, “ensino profissional”. Da mesma
forma, após análise dos artigos encontrados, não foram localizados estudos que propusessem
a formação de professores de áreas técnicas para os multiletramentos.
Esses resultados
demonstram a importância de se investigar a relação entre professores do ensino
profissional e os letramentos e os multiletramentos, já que esses conceitos estão
relacionados com a prática social do indivíduo e, no ensino profissional, essa
prática social é personificada no conjunto de atuação desses professores. Por isso, o objetivo principal desta
pesquisa foi investigar como as habilidades para os letramentos e multiletramentos
são conduzidas por professores especialistas do ensino técnico.
A partir de 2020, com a necessidade de distanciamento social
imposta pela pandemia da Covid-19, os professores se viram desafiados pela
tecnologia e por conta das problemáticas sociais que afligem o sistema
educacional. Portanto, mesmo que a temática que envolve domínio de letramentos
e multiletramentos esteja alinhada às áreas de linguagens, é extremamente
importante investigar como os professores do ensino profissional lidam com essas
habilidades.
Ensino profissional e o mundo do
trabalho
Em janeiro de 2020, no Fórum Econômico Mundial, foi
divulgado relatório com mapeamento sobre as profissões mais importantes do
futuro, indicando que se destacarão aquelas que demandarão habilidades digitais
e humanas. O medo de que a tecnologia venha acabar com muitos postos de
trabalho ainda permeia a sociedade. No entanto, o Fórum indica que os
profissionais que possuírem habilidades para resolução de problemas complexos e
disposição para novos aprendizados, bem como conseguirem se manter atualizados
em suas áreas de atuação, atingirão as condições de se manterem empregáveis (WORD
ECONOMIC FORUM, 2020).
É importante situar o Brasil nesse cenário: o país ocupa o
oitavo lugar no ranking mundial do
Produto Interno Bruto (PIB) disponibilizado pelo Banco Mundial (2019), porém,
em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), é o 79° colocado conforme
dados da Organização das Nações Unidas (ONU, 2018). Para Ramos (2016), o
emparelhamento dessas posições só será possível por meio do desenvolvimento
educacional da população, principalmente por meio da educação profissional.
Como o ensino técnico é um dos
itinerários formativos abrangidos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
entende-se que essa modalidade de ensino deve priorizar a preparação de seus
alunos para o mercado de trabalho, fornecendo alternativas de atuação dentro
daquela profissão em que irão atuar. Além de estar alinhada com as exigências
do mercado, a escola técnica deve propiciar ao aluno o ajuste daquelas
deficiências que tenha carregado das etapas anteriores que frequentou, não só
porque a legislação aponta essa prerrogativa, mas por ser uma necessidade de
preparar o aluno para transitar nos mercados em que irá atuar.
Letramentos e multiletramentos
Para aprofundar o conceito de letramento é necessário
entender que as mudanças operadas pelos programas de letramento podem atingir
profundamente as raízes culturais de uma sociedade. Em algumas sociedades não
letradas, em que o processo de letramento foi feito por representantes de
outras culturas, o confronto direto com indivíduos com a consciência do poder
da escrita e da leitura trouxe resistências de ordem política (STREET, 2018).
De fato, a oralidade é um fator muito importante de ser
levantado quando se fala em domínio de leitura e escrita no Brasil, pois os
países latino-americanos possuem uma dinâmica diferenciada do vivenciado em
culturas europeias, no que tange a aquisição de escrita e leitura (CITELLI,
2000). Esses países não tiveram um tempo de maturação dessas habilidades por
conta dos processos históricos de colonização, bem como, a entrada de veículos
de comunicação, como rádio e televisão, por que “passaram do plano
discursivo-verbal para o dos meios audiovisuais” (CITELLI, 2000, p. 148).
Tendo isso em mente, fica mais fácil entender dados
apresentados por índices como o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF).
O índice é conduzido pelo Instituto Paulo Montenegro – Ação Social do IBOPE –,
em parceria com a ONG Ação Educativa. Tem como objetivo colher dados em relação
à leitura, escrita e matemática da população brasileira, visando fornecer
subsídios para o fomento de políticas públicas nas áreas de educação e cultura
brasileiras (RIBEIRO, 2004; RIBEIRO et al, 2015).
O último apontamento do INAF em 2018 mostra que 7 entre 10
brasileiros, de 15 a 64 anos, podem ser funcionalmente alfabetizados. O índice
também aponta que 45% dos que ingressaram ou concluíram o Ensino Fundamental
encontravam-se no nível elementar da escala INAF e, 49% dos concluintes do Ensino
Médio situam-se no mesmo nível elementar, demonstrando “limitações para
relacionar-se com as demandas cotidianas de uma sociedade letrada” (LIMA;
CATELLI Jr, 2018, p. 14). Isso demonstra que o fato de frequentar a escola
talvez não esteja surtindo uma melhora nas habilidades de leitura e escrita
dessa população.
Com retratos tão negativos em relação ao domínio de leitura
e escrita no Brasil, parece uma utopia pensar que a sociedade brasileira tenha
maturidade para lidar com as mais diversas atuações que a tecnologia
oportuniza. A imensidão de informações disponíveis nas redes interconectadas
com todo o mundo demanda habilidades não só de leitura. Demanda, da mesma
maneira, de criticidade na análise, rastreamento e utilização dessas
informações que somente podem ser desenvolvidas caso a caso, evidenciando ainda
mais o impacto do multiletramento na educação profissional.
Um dos caminhos para a melhor formação desses jovens é sem
dúvida o entrelaçamento das leituras com as mais diversas plataformas
comunicacionais existentes. Ler e escrever são habilidades mais fundamentais nos
ambientes digitais do que em outras interações. Em um certo ponto de vista,
nesses ambientes, o usuário não é mais um leitor passivo, pois comenta,
contribui e modifica a informação que chega até ele (ROJO, 2013).
A velocidade com que as novas formas de comunicação se
proliferam parecem não ter fim. Um exemplo dessa nova realidade é a proposta de
redação para o vestibular da UNICAMP realizado em 12/01/20, que pedia ao
candidato para realizar um roteiro para um podcast sobre biodiversidade e
sociodiversidade (QUINELATO, 2020). Além de o candidato saber desenvolver um
texto sobre biodiversidade e sociodiversidade, o aluno também precisava saber como
funcionam os podcasts e como desenvolver um roteiro. Essa atividade consegue
alinhar muitas habilidades e propõe ao aluno uma interação com a sociedade que
antes não podia ser vista em exercícios escolares.
No que tange à empregabilidade, o nível de letramento é
menos relevante do que a classe social, gênero ou etnia a que o indivíduo
pertence, pois, o baixo letramento seria mais relacionado com o nível de
pobreza e privação de acesso a conteúdos que tornam o indivíduo mais letrado do
que a outros fatores relacionados à aprendizagem. As empresas costumam aplicar
testes para avaliar os candidatos às vagas de emprego em que as habilidades
letradas exigidas têm pouca ou nenhuma relação com a função que vão desempenhar
na empresa. Assim, a função desses processos seletivos termina sendo filtrar
tipos sociais e não exatamente determinar se o nível de letramento atende às
tarefas exigidas pela posição ou cargo a ser pleiteado (DELGADO-MARTINS et al,
2000).
Dessa forma, os multiletramentos aparecem como uma ferramenta
importante para a condução da apropriação do conhecimento, já que leituras de
trabalho não estão apenas nos livros acadêmicos, sendo dissolvidas pelas redes,
nas mais diversas formas de apresentação. Blogs, sites, canais no YouTube,
perfis no Instagram ou Facebook, podcasts e tantas outras formas de
representação. É necessário mencionar também que a rede oferece facilidades
para encontrar outras pessoas com os mesmos interesses, tornando possível a
formação de grupos de estudo e compartilhamento de conhecimentos.
Na sociedade do conhecimento, em que são produzidos
materiais nas mais diversas formas e suportes (vídeos, textos impressos,
digitais, áudios, podcasts e as mais diversas fontes de informação são trazidas
à pauta), não há como desconsiderar esses fenômenos informacionais como
desafios, tanto para o professor como para o aluno. Produzir textos em
diferentes plataformas é tão ou mais importante do que apenas saber como
consumir esse tipo de informação.
O que se pode ver é que todos os desdobramentos que o
letramento possibilita vão na direção de uma atuação autônoma do indivíduo na
sociedade e é exatamente essa a relevância dessa pesquisa para contribuição no
campo educacional.
Método de pesquisa
Para realização deste estudo,
optou-se pelo método de pesquisa descritivo com a abordagem qualitativa, pois
confronta a revisão bibliográfica com a pesquisa de campo realizada através de
entrevistas com professores de disciplinas técnicas na Escola Técnica Parque da
Juventude, do Centro Paula Souza, na cidade de São Paulo. Esta é uma pesquisa
qualitativa, pois, segundo Sampieri et al (2013, p. 376), o objetivo desse tipo
de pesquisa é “compreender e aprofundar fenômenos, que são explorados a partir
da perspectiva dos participantes em um ambiente natural e em relação ao
contexto”. Corroborando com o conceito apresentado, essa pesquisa visa
investigar, através de entrevistas em campo, como os letramentos estão sendo
entendidos e trabalhados por professores no ensino técnico.
A amostra de pesquisa é homogênea, sendo composta por
indivíduos com as mesmas características, para que possamos focar nas situações
de letramento. A característica comum desses indivíduos é: todos são docentes
da ETEC Parque da Juventude e lecionam mais de um componente da base técnica de
algum dos cursos ofertados pela unidade.
A
metodologia de entrevistas foi escolhida por conta do caráter social que os
letramentos e os multiletramentos carregam. A investigação através de perguntas
em ambiente menos formal possibilita a troca de informações, como também o
estudo das falas dos participantes. Para a coleta de dados foi utilizado como
instrumento principal a condução de entrevistas abertas, ou seja, aquelas
baseadas em um roteiro flexível para que os participantes expusessem da melhor
maneira suas experiências. Dessa forma, o roteiro de entrevistas desta pesquisa
foi composto por perguntas gerais (formulações mais globais), exemplificativas
(para contextualização do fenômeno estudado), estruturais (relação dos
conceitos a serem estudados) e de contraste (para classificação do fenômeno).
Para
instrumentalizar essas entrevistas foram utilizadas as seguintes ferramentas:
gravação eletrônica das entrevistas e anotações no diário de bordo de pesquisa
durante e logo após cada uma das entrevistas. A análise dos dados aferidos
ocorreu a partir da metodologia de desenho emergente, pois ao analisar os dados,
o pesquisador pôde categorizar as informações para construção de sua teoria
(SAMPIERI et al, 2013).
Resultados da pesquisa
Foram realizadas entrevistas com os docentes entre o dia
30/08/19 e o dia 03/10/19. O roteiro de entrevistas trazia questionamentos
relacionados aos dados do INAF (LIMA; CATELLI Jr, 2018), bem como questões sobre
a atuação desses professores em relação à condução de atividades de leitura,
escrita, interpretação de textos e uso de diversidade de textos para pesquisas
nas áreas técnicas em que esses professores atuam.
Os doze professores entrevistados
provêm das mais diversas áreas de atuação, como Administração de Empresas,
Análise e Desenvolvimento de Sistemas, Biblioteconomia, Ciências Contábeis,
Ciências Econômicas, Direito, Enfermagem, Propaganda e Marketing e Publicidade
e Propaganda. Todos os professores entrevistados possuem pelo menos uma
especialização Lato Sensu na área de
sua graduação e alguns possuem mais de uma graduação.
À época da pesquisa, a escola trabalhava com duas
modalidades de cursos: os modulares e, concomitante com o ensino técnico,
os cursos de Ensino Técnico Integrado ao
Médio (ETIM). As certificações oferecem aos alunos o mesmo grau de atuação,
pois nos dois casos esses alunos são certificados como técnicos na habilitação
a que se dedicaram em seus cursos.
Para os professores, essas diferenças refletem-se nas
abordagens dos conteúdos, tendo em conta que os alunos que cursam ensino
técnico, ao mesmo tempo que cursam o Ensino Médio, por conta da faixa etária,
entre 14 e 18 anos, não possuem experiência profissional. Já para os cursos
modulares, a dedicação do professor se volta para o caráter nivelador, pois os
alunos estão em faixas etárias, níveis profissionais e experiências diferentes.
Dessa forma, serão apresentados nesta pesquisa fatores que evidenciam
dificuldades em relação a essas diferenças, por se entender ser necessário
verificar a predisposição que os professores têm para o trabalho dos
letramentos e multiletramentos.
Os professores entrevistados, em sua maioria, têm entre 31 e
40 anos, sendo cinco professores e sete professoras. Quatro professores lecionam
concomitantemente em outras escolas e dois desses lecionam também em
faculdades. Sete professores lecionam apenas na unidade escolar. Os professores
que possuem outras formas de renda que não a docência são cinco, sendo que
apenas dois desses estão em regime de contratação por tempo indeterminado. Essa
verificação é importante tanto para avaliar o alinhamento desse profissional
com o mercado produtivo, quanto para o tempo que esse professor tem para se
dedicar à docência.
Peterossi e Menino (2017) relatam que a grande maioria dos
professores do ensino técnico, com experiência no mercado de trabalho, é
considerada apta para ministrar disciplinas técnicas e a legislação indica que
esses podem realizar formação pedagógica complementar. Dentre os professores
entrevistados, apenas seis possuem formação pedagógica. Esse fato corrobora o
pensamento dos mesmos autores quando sinalizam que “a grande maioria dos
professores do ensino técnico traz na sua bagagem de formação apenas a
experiência profissional vivenciada ou o próprio curso profissional” (PETEROSSI;
MENINO, 2017, p. 42).
A próxima etapa desta pesquisa foi a análise das falas dos
professores para contrapor a fundamentação teórica apresentada. Para nomear os
entrevistados e melhor situar suas falas, foram usados nomes de escritores
brasileiros: Ana Maria Machado, Ariano Suassuna, Carolina Maria de Jesus,
Clarice Lispector, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, Maria José Dupré,
João Cabral de Melo Neto, José Mauro de Vasconcelos, Rachel de Queiroz, Cora
Coralina e Ziraldo Alves Pinto.
O primeiro aspecto a ser verificado é a diversidade de
gêneros textuais trabalhados por esses professores em sala de aula. Nos relatos
trazidos foram pontuados os seguintes gêneros textuais: resenha crítica,
artigos acadêmicos, entrevistas de emprego, resumos, provas, formulários
estatísticos, apresentações orais, estudos de caso, redes sociais, resoluções e
legislações, manuais, desenvolvimento de softwares, produções audiovisuais,
realização de projetos e workshops, bem como aplicativos, como o Google
Classroom.
A diversidade de gêneros textuais
trazidas nesses relatos mostram o quão importantes são as intervenções deles a
fim de tornar o alunado mais ativo no aprendizado. Verificar que os professores
entendem a necessidade de aplicação de atividades diversificadas mostra o quão
alinhados esses estão com os conceitos de Peterossi e Menino (2017) quando
exprimem que os professores devem estar preparados para “para trabalhar em
equipe, organizar um ambiente tecnológico propício à aprendizagem dos alunos,
criar e aplicar estratégias de comunicação e ensino, delimitar e redefinir um
conteúdo ou habilidade técnica de forma a torná-los um objeto de aprendizagem
para o aluno” (PETEROSSI; MENINO, 2017, p. 109). A produção escrita mais
complexa ou não, como ferramenta para apropriação do conhecimento, aparece nos
seguintes relatos:
Ariano: Eu sinto a dificuldade dessa limitação em
querer essa produção escrita, né? Por quê? Porque ele vai precisar de uma
orientação. Até mesmo, como seria essa escrita? Por meio de narração,
dissertação?
Clarice: Mesmo que você dê o modelo, por exemplo, o
modelo de projeto que tem uma introdução, um objetivo, justificativa, ele tem
muita dificuldade. Mesmo que você explique o passo a passo. Porque, primeiro, é
algo que ele não, talvez não vinha utilizando nos anos anteriores da formação
dele, né?
A professora entende a dificuldade de seu aluno, mas não se
exclui da responsabilidade de orientá-lo para que ele consiga se apropriar
daquela forma de produção de conteúdo. Essa é outra vertente que precisa de um
olhar atento, pois em alguns relatos, os professores se distanciam da
responsabilidade de orientar seus alunos, culpando a má formação anterior ou a
postura desse aluno, como vemos em:
Lygia: É a falta de maturidade junto com a falta de
interesse de poder melhorar o seu conhecimento. Para eles é assim: basta ter o
papel que eu estou formado e o que eu sei ou deixo de ser já está bom demais.
Maria José: Eles não conseguem entender.... eles
não entendem... eles só leem como se fossem uma máquina. Quando você faz uma
pergunta, quando você fala para eles a relação de uma coisa com a outra, eles
ficam pensando: ué, mas era isso? Então, eles não entendem mesmo a compreensão
de texto.
A primeira questão do roteiro estava relacionada aos dados
do INAF (LIMA; CATELLI Jr, 2018) que apontam que 45% dos alunos egressos do Ensino
Médio estão em condição de alfabetismo funcional. Quando essa afirmação foi
feita para os doze professores, apenas dois se mostraram incomodados com os
dados e apresentaram questões sobre como a pesquisa foi efetuada. Para o
restante dos professores, esse dado foi aceito tranquilamente e, em alguns
casos, reforçado, inclusive com exemplos:
Carolina: pela situação que vejo, só aqui, por
exemplo, eu imaginaria que é muito mais.
Ziraldo: Difícil, né? Porque como você vai
conseguir... porque se você não consegue assimilar informações...
Ana Maria: Faz sentido, faz sentido. É um pouco
assustador pensar que 55% não terminam, mas pelo que a gente vê, muitas vezes,
é um número que não está tão fora.
É importante ressaltar que o estudo do INAF (LIMA; CATELLI
Jr, 2018) apresenta um dado que faz alusão à atividade do professor e, talvez
por isso, esses professores tenham se sentido tão confortáveis em aceitar o
dado apresentado. Porém, o próximo relato demonstra um incômodo em relação ao
dado apresentado:
Ariano: O que eles levaram em conta? O que foi
observado? Porque eu também tenho que ter cuidado em padronizar. A forma de
avaliação tem que ver, que parâmetros, que evidências eles estão considerando
para enquadrar essa amostra de 45% de alfabetizados funcionalmente. Então, eu
não vou dizer que está errado. Precisaria observar, né?
Esse relato é importante para ressaltar o olhar questionador
do professor, pois Peterossi e Menino (2017) indicam que nas escolas técnicas
existe uma descontinuidade da formação do aluno, já que o Ensino Básico
privilegia a formação individual e o técnico está voltado a integração de
normas sociais e voltadas para a preparação do trabalho.
A segunda questão da entrevista estava voltada para a
atuação do professor em relação a apropriação da leitura, interpretação de
textos e escrita em sala de aula e a terceira questão estava ligada à atuação
do professor na orientação dos alunos para aprimoramento dos textos produzidos.
Embora, todos os professores tenham se mostrado predispostos
a orientar seus alunos na melhor produção de textos escritos, indicando
equívocos em relação à grafia, acentuação, pontuação e outros aspectos da
língua escrita, muitos relatos ressaltam certa dificuldade em conduzir essas
questões:
Ariano: acabo, dentro do meu conhecimento, sim,
fazendo essas correções, né? Faço essas correções como uma necessidade.
Necessidade de, poxa, meu papel é ajudar a melhorar. Então, por mais que eu
veja ali, opa, não me atribuir a essa função de correção, né? Mas eu assumo
esse compromisso.
Ziraldo: Encaminho para eles e peço para eles
colocarem, né? Enfim, fazerem uma atividade em cima daquele texto que eu
entrego para eles e eu percebo que há erros de concordância, erros de grafia.
Procuro fazer essa pontuação e, só assim, às vezes eu enxergo isso como uma
falha minha como professor, por que chega uma hora que você desiste porque ou
você passa a dar nota no que o aluno está de uma certa forma sofrivelmente,
vamos dizer de forma sofrível, entregando para você.
Alguns relatos mostram a noção de conhecimento do
preconceito linguístico, mesmo sem saber nomear. Bagno (2015) define como
preconceito linguístico a confusão que se faz entre o domínio da escrita e da
fala dentro das regras gramaticais convencionadas como padrão da língua e o
conhecimento que o indivíduo possui e talvez não saiba reproduzir dentro desses
regramentos padronizados. Dá-se o nome de preconceito porque é preciso
distanciar a falta de domínio da linguagem padrão do conhecimento por trás da
representação talvez não adequada com o que se é esperado. Os relatos dos
professores indicam preocupação com esse fato:
Clarice: Eu corrijo na prova, na atividade. Eu
coloco lá, eu corrijo a palavra, né? Somente quando eu não entendo, aí coloco
uma interrogação e quando eu vejo da palavra errada, eu faço a correção. É
importante para ele, né? De repente, a vida inteira ele achou aquela palavra
tinha aquela escrita e, na verdade, não é?
Fernando: Então, você fala: ó, cuidado com a
escrita! Cuidado com a pontuação, a gramática! Olha os verbos, né? Então para
TCC, eu vou bem mais a fundo, para pegar, geralmente, são em duplas ou trios,
daí eu chamo individualmente um por um para fazer esse acompanhamento.
João Cabral: Faço esses apontamentos e converso em
particular com o aluno. Inclusive, na hora da avaliação, eu peço para o aluno
sentar do meu lado e eu coloco algumas questões porque em determinadas
situações você não deve expor o aluno, mas você colocar esses aspectos
particulares com a finalidade, com o intuito de melhorar, com que ele cresça
esse desenvolvimento pessoal, profissional, educacional, eu acho que é válido.
Alguns professores entendem que o trabalho do professor de
línguas é revisar o texto dos alunos como uma prestação de serviços de
consultoria na área de redação e, não os orientar a seguirem aperfeiçoando
sempre sua linguagem nas mais diversas formas de atuação e, por isso, também se
perdem ao orientar seus alunos na confecção de seus próprios textos, como é
possível ver em:
Cora: Eu fazia isso antigamente. Hoje, eu não faço
mais tanto. E faço assim, quando é muito grotesco, né? Porque isso me tomava
muito tempo, né? Eu começava a ler texto, principalmente eu que trabalho com
orientação de TCC, eu começava a ler texto e corrigir texto. Eu levava horas e
horas fazendo isso, né? E, para mim, ficou inviável. Hoje, eu recomendo eles
terem contato com os professores de português da casa para que essa revisão
seja feita com continuidade, né?
Existe claramente uma confusão entre o trabalho do professor
de línguas como orientador da apropriação da linguagem na prática e o possível
detentor dos regramentos gramaticais. Outros relatos, trazem a importância de
se ter um professor de língua portuguesa para auxílio de sua prática docente:
José Mauro: Os professores, quando têm, de redação,
língua portuguesa, enfim, tem essa preocupação de voltar um pouco atrás para
recuperar, tentar recuperar ou corrigir algumas coisas para seguir, né?
Ariano: Eu peço a ajuda do professor ou professora
que tem ali até mesmo habilitação, até mesmo que está autorizada a trabalhar
isso com maior propriedade que eu.
Em outra ponta, houve também a preocupação com o que o
mercado exige do aluno em relação ao domínio da linguagem escrita:
Rachel: Quem está no RH não tem uma visão de
professor. Ele tem uma visão de empresa, se você minimamente não escreve com
uma letra razoável e com uma pontuação. Até pode ter um errinho ou outro, a
pessoa ainda tolera, mas se for muito grosseiro, ele não vai ser aprovado por
causa da questão do português.
Esse relato vai ao encontro do pontuado por Delgado-Martins
et al (2000) quando os autores refletem sobre os textos cobrados em entrevistas
de emprego e ressaltam que, talvez, os textos pedidos e avaliados não estejam
necessariamente voltados às habilidades exigidas para o cargo ao qual esses
candidatos estejam pretendendo.
A última questão perguntou aos professores se eles
acreditavam que seus alunos tinham dificuldades em procurar informações para as
pesquisas pedidas. Nessa vertente, a pesquisadora informou que pesquisas podiam
ser algo mais do que trabalhos escritos, mas poderiam ser vídeos, podcasts,
posts em redes sociais, para que os professores entrevistados pudessem relatar suas
experiências com ferramentas diversificadas. A pesquisadora também perguntou se
o aluno, após localizar as informações que necessita para suas pesquisas,
consegue as interpretar e produzir a pesquisa solicitada. Nesse ponto, os
relatos dos professores desencontram-se:
Carolina: Vamos colocar assim: Gente, eu tô
dando... eles têm (dúvidas) do básico até a parte de encontrar. Gente, eu tô
deixando um link de vídeo, é capaz de eles escreverem assim: Professora, não
encontrei o link.
Ariano: Vai precisar de uma intervenção, às vezes,
do professor. Porque você fala: pesquisa isso daí... e vai chegar alguns. Eu
quero que produza isso, daí... vão chegar alunos te perguntando se é o caminho
que tá (certo). Se são os caminhos que podem chegar a uma solução possível.
Lygia: Para eles jogar no Google e colocar lá o
tema já é a pesquisa e eles acabam trazendo até mesmo coisas que não são
válidas.
Maria José: Não tem dificuldade de localizar porque
tem muita informação. Eles têm dificuldade em entender do que eles estão
escrevendo.
José Mauro: Encontrar, eu acho que não. Encontrar,
eles conseguem encontrar bem. Eu acho que fica mais na questão da análise e da
produção mesmo, né? Porque, às vezes, eles encontram a informação e aí, eu
falo: tá! Mas você tem que tentar escolher o melhor, né?
A falta de prática leitora do aluno também surge como um
fator condicionante à dificuldade de se localizar a informação adequada, bem
como a qualidade da fonte de pesquisa utilizada:
Ana Maria: A grande maioria consegue, mas têm alguns
que você percebe que, por resistência, por falta de leitura, por falta de
costume de leitura têm muita dificuldade. E isso, você percebe por que se
propaga em todas as disciplinas.
Rachel: Quando você fala de pesquisa em ambiente
científico, a ideia deles sobre isso é zero. Eles sempre preferem páginas
abertas, sempre blog e aí você fala: então, não pode.
Cora: Eu falo para os meus alunos: gente, daqui a
pouco eu vou estar vendo como referência bibliográfica um grupo de WhatsApp,
né? (risos) tipo, ouvi no grupo do WhatsApp, né? De tão sem nexo que tá. E ele
não têm essa visão acadêmica.
O professor Fernando adiciona que, na sua área de atuação, a
competência de seleção de informações confiáveis é uma das mais importantes:
Fernando: O técnico em biblioteconomia é a
representação da informação. Se você não sabe localizar, tratar e representar
isso, ou seja, interpretar, você está defasado.
A tecnologia tem mudado os rumos do trabalho nas últimas
décadas e não há mais como conceber aversão às práticas que envolvam
tecnologias, principalmente no que tange ao fomento de práticas criativas.
Porém, alguns relatos vão na contramão dessa realidade:
Maria José: Eu não trabalho mais com PowerPoint,
agora tudo é ditado. Então, eles têm que entender, eles têm que começar a
escrever mais.
João Cabral: Eu não costumo utilizar o trabalho
digitalizado. Eu peço para eles manuscrito.
Apesar dessa percepção, as mudanças que a tecnologia tem
operado na sociedade não passaram despercebidas, bem como a dificuldade de
acesso:
Rachel: Eu acho que por causa das tecnologias, as
pessoas escrevem tudo pela metade.
Rachel: Não fica perfeito porque às vezes a gente
não tem tempo hábil, às vezes o aluno não consegue acesso para conseguir ver as
coisas, às vezes a gente tem que dar umas ajudadas.
Já o domínio dela pelo professor apareceu como uma
necessidade para que esse fizesse a mentoria necessária para sua prática
docente:
Ariano: Não basta apontar a ferramenta, tem que
saber que também, é nossa obrigação de ajudá-lo a usar a ferramenta. Muitos
querem utilizar esse recurso e não passa o passo a passo.
E a necessidade de conhecer o grupo de alunos para saber
como trabalhar com eles em sala de aula:
Rachel: Eu já tive algumas experiências com vídeo e
eles fazem muito rápido, mesmo com um grupo de pessoas mais velhas na sala, os
mais novos, meio que pegar a mão e coisa vai muito rápido.
José Mauro: Eu tento no grupo, mesclar pessoas que
pelo menos já tiveram uma vivência prática porque aí você já sabe pelo menos
como é que funciona e aí dá para melhorar aquele que nunca viu, né?
Depois das referências sobre multiletramentos apresentadas
neste artigo, entender que existem diversificadas formas de se apropriar do
conhecimento e de se apresentar conteúdos que se utilizem da linguagem, nas
mais diversas formas, é importante para a atuação tanto de professores em sala
de aula quanto de alunos no mercado de trabalho. O relato de Rachel ilustra
essa vertente:
Rachel: Se a gente fala, o paciente entende, se a
gente não fala nada com o acompanhante, com o paciente, com o médico, acaba,
vira um caos, porque a gente não tem a informação concreta. Tem a parte
escrita? É importante, mas aí a gente fala como técnica. A fala técnica é
compacta. Às vezes a gente fala, fala, fala e quando olha para o paciente, ele
não entendeu nada. Você tem que falar de um jeito que ele entenda, que se
aproxime da realidade do paciente.
Antes de finalizar essa etapa de
análise dos resultados, é preciso incluir dois pontos que surgiram nos relatos
dos professores entrevistados. Um dos pontos é a necessidade de acompanhamento
dos professores com pouco tempo na docência. O professor Ziraldo, a época da
entrevista possuía oito meses de experiência como docente, trouxe a seguinte
fala quando questionado se os alunos se sentiam confortáveis com seus
apontamentos em relação aos seus textos:
Ziraldo: Eles gostam de colocar obstáculos, né? Na
vida, vamos dizer assim. Ah, o professor está empatando. Daí para que eles não
venham a desistir (do curso) ou gerar qualquer tipo de insatisfação que venha a
chegar na coordenação, eu procuro fazer de forma sutil assim, escrever como uma
espécie de motivação ou inspiração.
Dessa forma, a insegurança apresentada pelo professor em
relação a questionamentos dos estudantes – que, potencialmente, cheguem à
coordenação ou a prováveis evasões – pode atrapalhar o seu próprio desenvolvimento
em sala de aula. Ressaltar esse relato traz a importância de se estabelecer
métodos para oportunizar a melhoria da prática docente, principalmente em relação
a professores em início de carreira. Para Peterossi e Menino (2017, p. 109), a
prática docente, como prática profissional, pode ser melhorada ou estabelecida com
segurança observando-se, para o exercício do magistério, os seguintes aspectos:
“dominar os saberes e práticas sociais de uma profissão técnica a partir do
campo disciplinar definido; definir com precisão as atividades do aluno;
preparar e realizar a sua atividade didática no campo disciplinar definido”.
O último ponto a ser analisado foi o trazido pela professora
Rachel ao falar de sua experiência docente com um aluno refugiado que possuía o
francês, como língua materna. A professora relatou que existe a possibilidade
de revalidação do diploma de profissionais estrangeiros e as dificuldades que esse
aluno enfrentou para conseguir acesso a um emprego na área de enfermagem.
Rachel: o RG dele era de estrangeiro, ele foi para
o hospital e aí o pessoal optou por não fazer a prova escrita. Fez mesmo meio
que uma acareação, uma sabatina nele, via oral, ali, com uma pessoa anotando o
que ele estava falando. Então, aquelas entrevistas práticas orais: você dá a
pergunta, a pessoa começa a falar e a outra pessoa escreve e, aí, depois a
gente lê para pessoa o que que ela escreveu: você quer acrescentar alguma
coisa? E aí ele conseguiu super bem, ele passou, conseguiu entrar no hospital,
enfim. Está super bem encaminhado.
Esse relato traz uma riqueza de entendimento de adaptação
das necessidades das pessoas a fim de adequá-las às áreas de trabalho. As
teorias dos letramentos e multiletramentos estudadas ao longo desta pesquisa
trazem a necessidade da abordagem social que a linguagem tem para o indivíduo.
Quando existe essa preocupação de integração de um indivíduo, que possui
claramente restrições de entendimento do idioma, existe também uma perspectiva
de formar uma sociedade mais justa.
Incluir os indivíduos menos letrados dentro do padrão
conceituado na sociedade é o exercício mais importante que os teóricos
estudados nesta pesquisa trouxeram. Street (2018, p. 37) relata que “tem-se
reconhecido com frequência que as pessoas absorvem práticas letradas em suas
próprias convenções orais, ao invés de simplesmente imitar aquilo que foi
trazido”. O último relato da professora Rachel transcrito acima é uma evidente demonstração
de como nem sempre o escrito realmente representa o entendimento do indivíduo
em relação ao conteúdo informado em determinada situação.
Para isso, o objetivo principal
desta pesquisa foi investigar como
as habilidades de letramento são conduzidas pelos professores especialistas do
ensino técnico. A partir da análise dos relatos trazidos pelos professores,
pode-se ver que há uma necessidade de formação de professores especialistas em
áreas técnicas para entendimento sobre como as teorias de letramentos e
multiletramentos podem ajudá-los na condução de suas aulas, bem como para a
integração entre os docentes das áreas técnicas com os de línguas a fim de
aprimorar a atuação de todos na formação de seu alunado.
O que se torna evidente é que os letramentos ou os
multiletramentos que oferecem abordagens mais amplas e voltadas para o convívio
social, principalmente os multiletramentos, podem ressignificar o uso da
linguagem, em suas mais diversas formas de apresentação: exploração de
trabalhos com imagens estáticas, vídeos, sons e textos que se utilizem das
práticas modernas de apresentação, tudo isso em reportagens multimídias
encontradas em blogs, por exemplo. Em suma, essas diversas formas de
apresentação podem oferecer ao professor possibilidades de ampliação da
apropriação do conteúdo pelo aluno. Utilizar-se dessas ferramentas para a
ressignificação do domínio da leitura e da escrita é um caminho essencial para
o profissional do século XXI, e os professores do ensino técnico deveriam se
apropriar dessas ferramentas em sala de aula.
Considerações finais
O objetivo desta pesquisa foi investigar como as habilidades
para os letramentos e multiletramentos são conduzidas por professores
especialistas do ensino técnico. Para isso, foi utilizado o método de pesquisa
descritivo, com abordagem qualitativa, confrontando a revisão bibliográfica com
a pesquisa de campo realizada através de entrevistas com professores de
disciplinas técnicas na Escola Técnica Parque da Juventude, do Centro Paula
Souza, na cidade de São Paulo.
É possível afirmar, a partir da análise dos relatos dos
professores, que existe uma noção da necessidade de se proporcionar o estudo de
diversos gêneros textuais. No entanto, não foi possível aferir se o
aprimoramento da linguagem é um ponto realmente trabalhado por esses
professores, apesar de a linguagem ser o código utilizado nas mais diversas
interações das atividades trabalhadas em sala de aula desses cursos técnicos.
Por isso, entende-se ser apropriado aprofundar futuramente esse viés de análise
a fim de entender qual o papel da linguagem na prática diária desses
professores.
Ainda assim, é importante tentar aproximar as duas pontas de
atuação de professores (linguagens e área técnica), principalmente referente à
apropriação do conhecimento do aluno. Quando o trabalho do professor de línguas
está muito distante do trabalho do professor especialista no ensino técnico,
pode haver uma desconexão ou desentendimento da importância da aula de línguas
dentro do curso técnico, por parte do aluno. Esse é um ponto que precisa de
aprofundamento e estudos adicionais para se compreender tanto como o aluno
quanto o professor de áreas técnicas entendem a importância das linguagens para
composição do currículo do ensino profissional.
Já em relação à concepção de eventos de letramento adequados
à melhoria das habilidades de leitura e escrita de seus alunos, é possível
verificar que as atividades proporcionadas pelos professores especialistas
contêm uma diversidade de exploração de gêneros textuais em suas atuações,
principalmente falas como oferta de “aulas e atividades práticas”. Nessa
vertente, propõe-se aprofundamento de estudo para verificar o quão alinhadas as
teorias de multiletramentos, utilização de Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC’s) e metodologias ativas no ensino técnico confundem-se ou
como podem entrelaçar-se e proporcionar um aprendizado ativo na educação
profissional.
De fato, os professores não consideram os letramentos e
multiletramentos em sua atuação em sala de aula, não por falta de vontade e
intuição. Os professores consideram o uso da linguagem, tanto na oralidade
quanto na escrita, uma ferramenta essencial para a apropriação do conhecimento
pelo alunado. Porém, ainda consideram a sua atuação deslocada da atuação dos
professores de língua materna, já que ao que parece, o professor de língua
materna detém o conhecimento total da linguagem, na visão desses professores.
Romper essas barreiras entre áreas técnicas e linguagens
parece ser o ponto primordial para a obtenção de um trabalho efetivo de fomento
aos letramentos e multiletramentos na educação profissional. Para isso, é
necessário um esforço dos atores que compõem o processo educacional do ensino
técnico para desenvolver eventos de letramento capazes de ressignificar a linguagem
nas salas de aula do ensino profissional. O relato da professora Rachel explora
o esforço que o hospital realizou para contratação do candidato (enfermeiro) que
possuía outra língua materna. Entender que um estrangeiro, mesmo sem dominar o
idioma, pode realizar atividades técnicas e esforçar-se para quebrar essas
barreiras que o idioma impõe parece ser um desafio. No entanto, entender que
essa dificuldade não o torna incapaz de exercer a atividade a que está sendo
contratado, vai ao encontro de todos os conceitos defendidos pelos principais
autores que trabalham com os conceitos de letramento e multiletramentos.
A apropriação dessa teoria pode ser o movimento que a escola
profissional precisa tomar para ressignificar o ensino e a aprendizagem, bem
como o domínio da linguagem com os alunos brasileiros. Nessa direção, os
professores entendam que eles – profissionais especializados em várias áreas do
conhecimento – fazem parte da construção de indivíduos cada vez mais
conscientes da importância que o uso da linguagem, seja escrita ou falada, tem
para o exercício das demandas sociais, com ou sem tecnologia.
É importante também entender que a tecnologia não é apenas
uma tendência social, estando relacionada ao próprio desenvolvimento da
sociedade. Com essa quebra de paradigmas do ambiente escolar do físico ao
digital, percebe-se a importância dos multiletramentos para lidar com as
adversidades da educação em regime remoto. Ainda assim, as oportunidades de
expansão e criação de novos acessos a materiais que dão suporte ao professor no
desenvolvimento de habilidades de multiletramentos dos alunos, demandam o desenvolvimento
do letramento digital, tanto dos professores quanto dos alunos. Então,
professores e alunos empenham-se diariamente para achar uma maneira de aprimorar,
de forma ágil e ativa, sua fluência digital, a fim de alcançar todo o potencial
de trabalhar multiletramentos dentro de ambientes digitais da educação em
regime remoto.
Em conclusão, esta pesquisa demonstra que os professores
especialistas do ensino técnico sabem e entendem a necessidade de diversificar
suas práticas em sala de aula, principalmente oferecendo gêneros textuais das
mais diferentes fontes. Porém, a pandemia também evidenciou alguns problemas
que nossas escolas sustentavam como única forma de trazer a educação. É
necessário trabalhar a compreensão e interpretação dessas informações, uma vez
que o sistema de avaliação tradicional das escolas se mostra obsoleto.
Comprova-se, nesse caso, que o desenvolvimento de multiletramentos é de suma
importância dentro de ambientes remotos que surgiram durante a pandemia, tal
como as escolas serão adaptadas para um possível cenário de educação híbrida em
um momento pós-pandêmico.
Por fim, podemos observar também que o protagonismo do aluno
fica em evidência, uma vez que em ambientes digitais de aprendizagem o aluno é
o gestor da sua educação, posicionando o professor como um mentor e facilitador
do processo educacional. Isso causa uma certa estranheza no sistema
educacional, principalmente no que tange às escolas mais tradicionais, por se
tratar de uma barreira herdada de um sistema educacional antiquado a ser
quebrada. No entanto, é essa transição de posicionamento dos personagens dentro
desse cenário que evidencia ainda mais a importância de trabalhar
multiletramentos, incluindo o letramento digital e midiático, corroborando com
essa pesquisa que fora realizada antes mesmo da pandemia.
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Recebido em 20-08-21
Aprovado em 13-09-21
[1] Mestra em Gestão e Desenvolvimento da Educação Profissional,
Professora de Ensino Médio e Técnico no Centro Paula Souza – paulaamorato@gmail.com
[2] Doutor em Educação, Arte e História da Cultura, Professor e Pesquisador
no Programa de Mestrado em Educação Profissional do CEETEPS e representante do PPG
para avaliação de periódicos CAPES
- roram1000@hotmail.com
[3] Mestranda no Programa de Mestrado em Educação Profissional, Designer de aprendizagem na Escola
Conquer - aliceturibio@gmail.com
[4] Acesso pelo endereço https://www.periodicos.capes.gov.br/.