Possibilities
for coping with evasion in the College Degree in Rural Education: the research
as a political and social device for transformation
Posibilidades
de enfrentamiento del abandono estudiantil en la Licenciatura en Educación del
Campo: la investigación como instrumento político y social de transformación
Roberta Gonçalves Duarte[1]
Débora Monteiro do Amaral[2]
Resumo
Este artigo apresenta as ações de
enfrentamento da evasão e da descontinuidade dos estudos propostas como
resultado de uma pesquisa que buscou compreender os desafios da permanência
estudantil no curso de Licenciatura em Educação do Campo – campus Goiabeiras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Também discute as possibilidades e as dificuldades que emergiram na tentativa
de aplicação de algumas dessas ações. Considerando a intervenção como uma das
características das pesquisas desenvolvidas em mestrados profissionais, a
pesquisa participante apresentou-se como uma opção adequada neste estudo. Para a produção
dos dados apresentados neste artigo, foram utilizados questionários,
entrevistas coletivas e análises compartilhadas, tendo os estudantes do curso
como sujeitos ativos em todo o processo. O referencial
teórico-metodológico fundamenta-se em Paulo Freire e em teóricos da educação
popular e da Educação do Campo. A pesquisa apontou que os desafios da permanência
estudantil neste curso articulam-se em uma teia de fatores, cujas motivações
podem ser tanto internas quanto externas à Licenciatura em Educação do Campo.
Os relatos dos estudantes destacaram o desconhecimento dos discentes e dos
próprios docentes em relação aos princípios e concepções desta graduação como
uma das principais causas da descontinuidade dos estudos. O estudo mostrou,
ademais, que a universidade ainda não está preparada para receber a classe
trabalhadora, em especial, a camponesa, havendo a necessidade de reinventar-se
para dialogar com as especificidades que o meio rural demanda.
Palavras-chave: Ensino Superior; Evasão Escolar;
Licenciatura em Educação do Campo; Mestrado Profissional; Permanência
estudantil.
Abstract
This
article presents the actions to deal with the evasion and discontinuity of the
studies proposed as a result of a research that sought to understand the
challenges of student’s stay in the Rural Education College Degree – Federal
University of Espírito Santo State (UFES), in Goiabeiras campus. It debates the
possibilities and difficulties that emerged in the attempt to apply some of
these actions, as well. Considering the intervention as one of the features of
the research developed in a professional Master's degrees, the research
presented itself as an adequate option in this study. For the production of the
data showed in this article, questionnaires, group interviews and shared
analyzes were used with the students of the course as active subjects
throughout the process. The theoretical-methodological framework is based on
Paulo Freire and on theoreticians of popular education and also Rural
Education. The work pointed out that the challenges of a student’s stay in this
course are articulated in a web of factors, whose motivations can be both
internal and external to the Degree in Rural Education. The students' reports
emphasize the lack of knowledge of the students and teachers concerning the
principles and concepts of this graduation as one of the main causes of the
discontinuity of their studies. The work also showed that the university is not
yet prepared to receive the working class, especially the peasants, with the
need to reinvent itself to dialogue with the specificities that the rural
setting requires.
Keywords: Higher Education; School evasion; Degree in Rural
Education; Professional Master's; Student’s stay.
Resumen
Este
artículo presenta las acciones de enfrentamiento del abandono estudiantil y de
la discontinuidad de los estudios propuestos como resultado de una
investigación que ha buscado comprender los desafíos de la permanencia estudiantil
en el curso de Licenciatura en Educación del Campo – campus Goiabeiras de la Universidad Federal de Espírito Santo (UFES).
También se discuten las posibilidades y las dificultades que han emergido con
el intento de aplicación de algunas de esas acciones. Considerando la intervención
como una de las características de las investigaciones desarrolladas en maestrías
profesionales, la investigación participante se presentó como una opción
adecuada en este estudio. Para la producción de los datos de este trabajo se utilizaron
cuestionarios, entrevistas colectivas y análisis compartidas, teniendo a los estudiantes
como sujetos activos en todo el proceso. El marco teórico-metodológico se
basa en Paulo Freire y en teóricos de la educación popular y de la Educación
del Campo. La
investigación señaló que los desafíos de la permanencia estudiantil en ese
curso se articulan en una red de factores, cuyas motivaciones pueden ser
tanto internas como externas a la Licenciatura en Educación del Campo. Los
relatos de los estudiantes destacaron el desconocimiento de los discentes y de
los propios docentes con relación a los principios y concepciones de esa licenciatura
como una de las principales causas de la discontinuidad de los estudios. Este
trabajo ha demostrado, además, que la Universidad todavía no está preparada
para recibir a la clase trabajadora, en particular a la campesina, teniendo que
reinventarse para dialogar con las especificidades que el medio rural demanda.
Palabras clave:
Enseñanza Superior; Abandono Estudiantil; Licenciatura en Educación del Campo;
Maestría Professional; Permanencia estudiantil.
Frente à ausência de uma
educação baseada na diversidade do meio rural, os movimentos sociais do campo se
destacaram ao criar alternativas educacionais que atendessem às
particularidades campesinas, sendo fundamentais para as discussões sobre a
Educação do Campo e a constituição da identidade camponesa.
Segundo Caldart, a
identidade do Movimento por uma Educação do Campo consiste na luta dos camponeses
por políticas públicas que garantam o seu direito a uma educação que seja no e
do campo. “No: o povo tem direito a
ser educado no lugar onde vive; Do: o
povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua
participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais”
(CALDART, 2011, p. 149, grifos da autora).
Essa
luta é
compartilhada por diversos sujeitos sociais, pensada com e a partir de um
recorte específico de classe, surgido em um
contexto de “[...] violenta desumanização das condições de vida no campo. Uma
realidade de injustiça, desigualdade, opressão, que exige transformações
sociais estruturais urgentes” (CALDART, 2011, p. 152).
Considerando o papel da educação para a superação
da relação hierárquica e desigual entre campo e cidade e visando a garantia de
direitos, as reivindicações passaram a pautar a presença da Educação do Campo
desde a Educação Básica até o Ensino Superior, cujos princípios
perpassem questões como o desenvolvimento sustentável, a agricultura familiar
camponesa, a Reforma Agrária e a formação específica de professores para
atuarem nas áreas rurais.
Nesse percurso, foram
criadas em 2007 quatro experiências-piloto de cursos
de Licenciaturas em Educação do Campo, ofertadas a
partir do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do
Campo (MOLINA, 2017).
A
Licenciatura em Educação do Campo tem como princípios a formação
multidisciplinar por área de conhecimento e em alternância de tempos e espaços
formativos, a intrínseca articulação entre escola e comunidade, a auto-organização
discente junto com a gestão compartilhada do curso, congregando docentes,
estudantes e membros dos movimentos sociais do campo, inclusive nas instâncias
decisórias desta graduação.
Na
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o curso foi criado em 2013 nos campi de Goiabeiras, em Vitória; e São
Mateus, norte do Espírito Santo, após longos processos de discussão de sua
proposta pedagógica. Em Goiabeiras, objeto de estudo desta pesquisa, o curso
iniciou suas atividades acadêmicas no Centro de Educação no ano de 2014,
ofertando habilitações nas áreas de Linguagens (Língua Portuguesa, Artes,
Literatura e Educação Física) e Ciências Humanas e Sociais (História,
Geografia, Sociologia e Filosofia).
A
Licenciatura em Educação do Campo – campus Goiabeiras da UFES tem como
objetivos específicos:
a. Formar e
habilitar profissionais em exercício docente nos anos finais do ensino
fundamental e no ensino médio que ainda não possuam a titulação mínima exigida
pela legislação educacional em vigor. b. Habilitar professores para a docência
multidisciplinar em escolas do campo nas seguintes áreas do conhecimento:
Linguagens (Língua Portuguesa, Artes e Literatura e Educação Física); e
Ciências Humanas e Sociais. c. Formar educadores para atuar na Educação Básica
em escolas do campo, aptos a fazer a gestão de processos educativos e a
desenvolver estratégias pedagógicas que visem a formação de sujeitos humanos
autônomos e criativos, capazes de produzir soluções para questões inerentes à
sua realidade, vinculadas à construção de um projeto de desenvolvimento sustentável
do campo e do país. d. Preparar educadores e educadoras para a implantação de
escolas públicas de Educação Básica de nível médio e de educação profissional
nas/das comunidades camponesas. e. Formar docentes para uma atuação pedagógica
transdisciplinar e articuladora das diferentes dimensões da formação humana. f.
Garantir reflexões/elaboração pedagógica específica sobre a educação para o
trabalho, a educação técnica, tecnológica e científica a ser desenvolvida
especialmente na Educação Básica de nível médio e nos anos finais da educação
fundamental (UFES, 2014, p. 10).
Esse levantamento aponta a urgência do debate sobre a permanência estudantil no curso, tornando intrigante o estudo dos motivos que têm levado os discentes a descontinuarem seus estudos, especialmente por conta das especificidades desta Licenciatura. Por tratar-se de uma pesquisa de mestrado profissional que prevê, ainda, a apresentação de um produto relacionado ao estudo desenvolvido, buscamos compreender junto aos estudantes as causas motivadoras da evasão para, coletivamente, propor ações que contribuam para o enfrentamento desta realidade e atuem na garantia da permanência, cujo resultado está elencado nos quadros 1 e 2.
Reflexões sobre a evasão
e a permanência no contexto do ingresso das classes populares no Ensino
Superior
Segundo pesquisa
realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes de
Instituições Federais de Ensino Superior e pelo Fórum
Nacional de Pró-reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis, em 2018, o percentual de estudantes inseridos na faixa de renda mensal familiar per capita de até 1,5 salário mínimo somava
70,2% (ANDIFES/FONAPRACE,
2019). Ou seja, pouco a pouco, o
perfil discente no Ensino Superior tem se aproximado da diversidade cultural,
racial e de gênero, bem como da desigualdade de renda do país.
Contudo, o
ingresso desses estudantes desafia as instituições a também garantir a
permanência, a aprendizagem significativa e aconclusão do curso, principalmente
nos campi universitários, espaços
marcados por uma cultura elitista e seletiva.
Nesse trajeto, nos deparamos
com a evasão e seus diversos entendimentos e implicações. Segundo Relatório da
Comissão Especial de Estudos sobre Evasão nas Universidades Públicas
Brasileiras, entende-se por evadido o estudante que “deixou o curso sem
concluí-lo” (BRASIL, 1996, on-line). O documento
explicita ainda a existência de três modalidades principais de evasão no ensino
superior.
evasão de curso: quando o estudante desliga-se do curso superior em
situações diversas tais como: abandono (deixa de matricular-se), desistência
(oficial), transferência ou reopção (mudança de curso), exclusão por norma
institucional; evasão da instituição: quando o estudante desliga-se
da instituição na qual está matriculado; evasão do sistema: quanto
o estudante abandona de forma definitiva ou temporária o ensino superior
(BRASIL, 1996, on-line, grifo nosso).
Bueno
(apud BRASIL, 1996, on-line) diferencia os conceitos de evasão
e "exclusão". Para o autor, a exclusão “implica a admissão de uma
responsabilidade da escola e de tudo que a cerca por não ter mecanismos de
aproveitamento e direcionamento do jovem que se apresenta para uma formação
profissionalizante", enquanto a evasão corresponde "a uma postura
ativa do aluno que decide desligar-se por sua própria responsabilidade"
(BUENO apud BRASIL, 1996, on-line).
Nessa
separação, Bueno ressalta a participação da instituição, do sistema de Ensino
Superior e do entorno social no processo de evasão discente, problematizando os
limites entre a responsabilidade institucional e individual, ou o que Freire
(2001, p. 35) elenca como razões “internas e externas à escola, que explicam a
‘expulsão’ e a reprovação dos meninos populares”.
Seguindo
esse caminho, Moehlecke (2007) traz à tona o questionamento a respeito da
responsabilidade institucional no processo de evasão. De acordo com a autora, “a
evasão por motivo de trabalho foi interpretada em muitos estudos como uma
decisão e escolha do aluno, nem sempre se questionando o modo como a
instituição, pela sua própria forma de organização, privilegia determinado
perfil de aluno, dificultando a permanência de outros” (MOEHLECKE, 2007, p. 2).
Ao refletir sobre a
evasão na Educação Básica, Freire (2001) trabalha com o termo “expulsão
escolar”, apontando que a saída da escola não caracteriza um ato voluntário do
estudante, mas imposto devido às condições adversas presentes dentro e fora dos
muros escolares e que interferem no processo de ensino e aprendizagem. O autor
defende que
as crianças
populares brasileiras são expulsas da
escola – não, obviamente, porque esta ou aquela professora, por uma questão de
pura antipatia pessoal, expulse estes ou aqueles alunos ou os reprove. É a
estrutura mesmo da sociedade que cria uma série de impasses e de dificuldades,
uns em solidariedade com os outros, de que resultam obstáculos enormes para as
crianças populares não só chegarem à escola, mas também, quando chegam, nela
ficarem e nela fazerem o percurso a que têm direito (FREIRE, 2001, p. 35, grifo
do autor).
Apesar do educador
referir-se ao contexto da Educação Básica, entendemos que esta análise pode ser
aplicada no Ensino Superior brasileiro, pois, guardadas as diferenças de cada
etapa e do público-alvo a que se destinam, a evasão é um problema que atinge a
todos os níveis educacionais do mundo contemporâneo e cujas motivações tendem a
aproximar-se.
Logo,
considerando as pesquisas já realizadas sobre a temática, aliadas à perspectiva
teórica adotada neste estudo, percebemos que a evasão pode resultar de uma
decisão do estudante ou de uma combinação de fatores institucionais, escolares,
sociais, econômicos e pessoais, o que caracterizamos como expulsão, seguindo a
proposição de Freire (2001). Ou seja, o estudante, nessa última hipótese, é
expulso em consequência de uma série de motivações que dificultam sua
permanência e que estão alheias à sua vontade ou possibilidade de resolução.
Assim,
corroboramos com a interpretação de Freire (2001) sobre a concepção de expulsão
escolar por acreditarmos que as motivações para a descontinuidade dos estudos
estão relacionadas à existência de fatores internos e externos à instituição,
podendo dificultar e impossibilitar a permanência estudantil.
Em
relação às possíveis causas para explicar a evasão no Ensino Superior, Moehlecke
(2007, p. 5) elenca em três grupos os fatores individuais e institucionais: “a)
aqueles que se relacionam ao próprio estudante e suas escolhas; b) os
relacionados ao curso e/ou à instituição; c) os relacionados a fatores
sócio-culturais e econômicos externos”.
Sobre
os fatores individuais, a autora destaca a incerteza quanto ao curso, motivos
familiares como doença e questões financeiras e a necessidade de trabalhar. Já
no rol de motivações institucionais, Moehlecke (2007, p. 13) enumera “[...]
desilusão com o curso; problemas relacionados ao curso como currículo (muito
rígido, inadequado para o aluno trabalhador), ao relacionamento com
professores, com colegas, funcionários; dificuldade de acesso à
instituição".
Veloso
e Almeida (2002) evidenciam a dificuldade dos estudantes da classe trabalhadora
em conciliar estudo e trabalho por conta da necessidade de exercerem atividades
remuneradas para sustentar os gastos com os cursos e/ou contribuir para a renda
familiar.
Nas licenciaturas,
estudos apontam que estas consistem em um dos grandes desafios para o combate à
evasão no Ensino Superior. Carvalho e Oliveira (apud GILIOLI, 2016, p. 15) constatam que “[...] por todo o Brasil,
as universidades apresentam alto índice de evasão nos setores de licenciatura
(48% não chegam a se formar, todo ano 19,6% desistem do curso)”. Os autores
destacam ainda a falta de perspectiva
na área devido à desvalorização da profissão de professor como fator de evasão nas
licenciaturas.
Sobre a qualidade da
ampliação do acesso ao Ensino Superior, Molina (2015) analisa que o
investimento público tem sido insuficiente. Nesse mesmo caminho, Mancebo et al.
discute a inexistência de garantias de qualidade.
[...] a
contrapartida financeira tem sido insuficiente, de modo que a expansão da rede
pública federal tem ocorrido com forte racionalização de recursos humanos e tem
remetido à precarização e intensificação do trabalho docente, configurando uma
expansão sem garantias de qualidade que longe de corrigir a distribuição
desigual dos bens educacionais, tende a aprofundar as condições históricas de
uma educação superior elitista e excludente (MANCEBO et al. apud MOLINA, 2015, p. 148).
Portanto, democratizar o
ensino para as classes camponesas significa ainda, incorporar, implementar e
respeitar, dentre as políticas de ações afirmativas implantadas, as
prerrogativas da Educação do Campo tanto no que diz respeito ao acesso quanto à
permanência.
Na Licenciatura em
Educação do Campo da UFES, o ingresso se dá por edital de seleção próprio,
respeitando as especificidades do curso e dos seus sujeitos. Em função da
organização curricular em alternância, o curso oferta mecanismos de assistência
estudantil durante as atividades desenvolvidas no campus Goiabeiras, como o custeamento de alimentação para todos os
discentes e hospedagem e transporte para aqueles que residem fora da Região
Metropolitana da Grande Vitória, uma vez que a universidade não possui
alojamento, apesar desta também ser uma reivindicação para esta Licenciatura.
Além disso, é prevista a sistematização da Ciranda Infantil, conforme
discutiremos adiante, para garantir que pais e mães possam estudar enquanto
seus filhos são cuidados de forma responsável e pedagógica no campus.
Entendemos, então, que o
não atendimento às demandas da classe camponesa refletiria apenas o cumprimento
do que determinam os instrumentos normativos quanto à criação de vagas, não
democratizando, de fato, o acesso ao Ensino Superior a essa parcela da
população e fragilizando sua permanência.
A proposta metodológica
Este
estudo emergiu com o objetivo geral de compreender os motivos que têm impossibilitado
a permanência discente na Licenciatura em Educação do Campo – campus Goiabeiras da UFES e propor
instrumentos, ações e/ou políticas de enfrentamento, apresentados enquanto
produto desta pesquisa de mestrado profissional.
Tendo
em vista que uma pesquisa crítica implica “[...] na recusa dos mitos da
neutralidade e da objetividade e obriga o pesquisador a assumir plenamente uma
vontade e uma intencionalidade políticas” (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1985, p. 25), e considerando
que neste estudo buscamos ir ao encontro do que Freire (2017) aponta sobre a
valorização e o respeito da sabedoria popular e de seus sujeitos enquanto
agentes potenciais no processo de emancipação, nos propusemos a realizar a pesquisa
participante. De acordo com Gil, a pesquisa participante “deseja colocar-se a
serviço dos oprimidos e necessita identificar com clareza quem são eles no
âmbito de uma ‘comunidade’” (2002, p. 150).
A
produção dos dados apresentados neste artigo teve o suporte
de pesquisa bibliográfica, investigação documental e pesquisa de campo, que
ocorreu em 2018 e contou
com a aplicação de questionário junto aos estudantes que ainda frequentavam o
curso; houve também a realização de entrevistas coletivas com aqueles que apontaram
em questionário a motivação em descontinuar seus estudos e foram feitas análises
compartilhadas com os estudantes que participaram dessas entrevistas, para a discussão
coletiva do material.
Entendendo que “a participação popular
comunitária deve se dar, preferencialmente, através de todo o processo
de investigação-educação-ação”,
e que “uma verdadeira pesquisa participante cria
solidariamente, mas nunca impõe partidariamente conhecimentos e valores”
(BRANDÃO; BORGES, 2007, p. 55, grifos dos autores), ou seja, que a pesquisa
participante deve caracterizar-se como um processo de criação social de
conhecimento, destacamos as entrevistas coletivas e análises compartilhadas
pela riqueza dos dados produzidos e pelos desafios enfrentados. Nesses espaços,
os estudantes apontaram possíveis caminhos para a garantia da permanência no
curso, revelando
a importância da busca pela emancipação, criticidade e diretividade da educação
na formação desses sujeitos.
A
análise do material ocorreu a partir da tabulação dos dados, identificação das
categorias que emergiram com maior frequência nos relatos dos estudantes e
análise de conteúdo, em que para
Bardin “os resultados brutos são tratados de maneira a serem significativos
(falantes) e válidos” (1977, p. 101).
Assim como as demais
etapas da pesquisa que objetivaram atender aos princípios da pesquisa
participante e da educação popular emancipatória de Freire (2017), a
pré-análise dos dados e a exploração do material foram realizadas de forma compartilhada e
dialogada com os envolvidos.
Do ponto de vista
metodológico, a investigação que, desde o seu início, se baseia na relação
simpática de que falamos, tem mais esta dimensão fundamental para a sua
segurança – a presença crítica de representantes do povo desde o seu começo até
sua fase final, a da análise da temática encontrada, que se prolonga na
organização do conteúdo programático da ação educativa, como ação cultural
libertadora (FREIRE, 2017, p. 156).
Após a exploração do
material, do tratamento e da interpretação dos dados à luz dos referenciais
teóricos, procuramos junto aos envolvidos compreender os desafios da
permanência estudantil no curso para, então, propor ações de enfrentamento.
O que encontramos no
trajeto e quais as possibilidades para a transformação
A partir da análise do
compartilhamento de conhecimentos, questionamentos e vivências alguns caminhos
mostraram-se fecundos, permitindo proposições coletivas para o enfrentamento da
evasão e fornecendo subsídios para atuação da coordenação do curso, articulada
com as demais unidades estratégicas da UFES, a fim de garantir a permanência
estudantil nesta Licenciatura.
Neste processo emergiram dez
categorias de análise. Para melhor entendimento dos diversos fatores que
interferem na permanência estudantil no curso, visto a evasão ter se
caracterizado como um fenômeno multifatorial, subdividimos as categorias em duas
dimensões atuantes: a dos desafios da permanência ligados a fatores internos
à Licenciatura em Educação do Campo e a dos desafios da permanência
relacionados a fatores externos.
Dentre os fatores
internos estão os desafios relacionados ao funcionamento e demandas acadêmicas
do curso, bem como a relação deste com seus sujeitos, isto é, o relacionamento
entre docentes e discentes, as atividades propostas, os impactos do calendário
acadêmico diferenciado e a participação estudantil nos espaços coletivos de
discussão.
Já os fatores externos são
caracterizados por aqueles de ordem pessoal ou emocional, incluídas aí questões
familiares e laborais, características da vida privada, mas que são vistas
pelos sujeitos da Educação do Campo como articuladas.
Os quadros 1 e 2 reúnem
de forma sistematizada o resultado que chegamos, elencando as categorias, ou
seja, as causas que desafiam a
permanência estudantil na Licenciatura em Educação do Campo, dispostas em
ordem decrescente de recorrência e intensidade em que apareceram nas falas
discentes e em interlocução com suas respectivas subcausas - desdobramentos que
se manifestaram nas categorias - e possíveis estratégias para superação.
Quadro 1 - Síntese de ações para
enfrentar a evasão referente
aos fatores internos - Vitória – 2019.
Causas |
Subcausas |
Ações de enfrentamento |
Desconhecimento
dos sujeitos sobre o curso |
Desconhecimento
dos estudantes |
Detalhar edital de seleção e produzir
informativo com orientações sobre o curso; manter o site do curso atualizado;
realizar palestras sobre o curso nas cidades do interior do estado; promover
momentos explicativos antes da matrícula entre a coordenação e os
ingressantes; realizar entrevistas individuais com os ingressantes e aplicar
questionário de disponibilidade; dialogar com líderes dos movimentos sociais
matriculados no curso para que trabalhem na acolhida discente, a
desconstrução de ideias preconceituosas e o esclarecimento das práticas do
curso. |
Desconhecimento
dos docentes |
Detalhar edital de concurso para
docentes; promover o fortalecimento do coletivo docente com a ampliação na
participação em grupos de estudos sobre a Educação do Campo, em reuniões
pedagógicas e demais atividades. |
|
Tensões
e conflitos internos entre estudantes e professores |
Conflitos
entre estudantes e docentes |
Promover reuniões pedagógicas ampliadas para que os estudantes sejam
sujeitos pedagógicos do curso, sendo este um espaço de vazão dos conflitos e
possibilidade de resoluções; disponibilidade para o diálogo e olhar
pedagógico atento às especificidades do curso e dos seus sujeitos; ampliar a
participação docente nas atividades de acolhida discente e nas apresentações
de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC); sistematização de formação
continuada para os docentes. |
Conflitos entre os estudantes |
Promover atividades culturais e de
integração discente (serões); fomentar a sistematização da auto-organização
estudantil. |
|
Dificuldades na realização das atividades |
Rotina
laboral exaustiva |
Aplicar questionário socioeconômico e
ocupacional aos estudantes para mapear a ocupação laboral e sua influência no
desempenho acadêmico; buscar entendimento tanto da UFES quanto dos docentes
do curso para as especificidades educacionais da classe trabalhadora, a fim
de que sejam traçadas propostas pedagógicas populares direcionadas a suas
necessidades; garantir momentos específicos de orientação de estudos. |
Não
compreensão das atividades solicitadas |
||
Calendário acadêmico |
Contrariedade no sentimento discente de
pertencimento à Universidade |
Realizar momentos explicativos antes da
matrícula, reforçando que o calendário diferenciado sem aulas diárias visa
possibilitar que a classe popular camponesa possa trabalhar e estudar;
avaliar constantemente com o coletivo deste curso a eficácia do calendário
diferenciado na manutenção da permanência estudantil. |
Desgaste em relação à jornada acadêmica
durante o Tempo-Universidade |
||
O silêncio discente |
Nos espaços de gestão compartilhada |
Fomentar junto aos discentes, propostas
de auto-organização mais acolhedoras, apostando no diálogo. |
Na comunicação interpessoal no momento de
decisão pela saída do curso |
Criar
redes de apoio no curso, formadas por pessoas eleitas para atuarem nesse tipo
de situação, buscando possibilidades de resolução junto à coordenação. |
Fonte: Do autor (2019).
Quadro 2 - Síntese de ações para enfrentar a evasão
referente aos fatores externos - Vitória – 2019.
Causas |
Subcausas |
Ações
de enfrentamento |
Trabalho |
Resistência das secretarias de Educação em liberar
os profissionais de suas atividades laborais para cursarem esta Licenciatura |
Promover
interação entre as secretarias municipais, Secretaria Estadual de Educação
(Sedu) e a UFES, inicialmente por meio de reuniões explicativas sobre o
curso, suas demandas e especificidades, visando combater a resistência por
desconhecimento. |
Dificuldade em administrar vínculos empregatícios
com as demandas do curso |
Realizar
momentos explicativos antes da matrícula, destacando o que é a formação em alternância,
como se desenvolve e sua implicação na organização do calendário acadêmico. |
|
Família |
Estudantes, pais e mães que precisam levar os filhos
para o Tempo-Universidade |
Sistematizar a Ciranda Infantil junto aos
estudantes, buscando auxílio da UFES na oferta de espaços adequados,
materiais de higiene e apoio e disponibilização de pessoal capacitado para
estar com as crianças de forma pedagógica e responsável. |
Machismo e patriarcado |
Criar redes de apoio e reflexão como possibilidade
de mediação. |
|
Não
reconhecimento do poder público |
Preocupação
discente com o futuro profissional |
Manter e ampliar as ações desenvolvidas pela
coordenação do curso em relação ao diálogo com a Sedu e a União Nacional dos
Dirigentes Municipais de Educação (Undime) para buscar reconhecimento. |
Recursos
financeiros |
|
Aplicar questionário socioeconômico e ocupacional
buscando compreender como os recursos financeiros interferem na vida acadêmica
e, posteriormente, propor ações direcionadas; gerenciar bolsas estudantis
priorizando discentes em vulnerabilidade socioeconômica. |
Preconceito em relação ao curso e seus sujeitos |
Preconceito dos profissionais com quem os estudantes
trabalham em relação à formação na Licenciatura em Educação do Campo |
Promover conhecimento crítico sobre o curso, por
meio de ações dialógicas de interação entre a Sedu, a Undime e secretarias
municipais de Educação, conforme destacado nas categorias “Trabalho” e “Não
reconhecimento do poder público”. |
Preconceito dos docentes do curso sobre a formação
ofertada |
Por
articular-se com a categoria “Desconhecimento dos sujeitos sobre o curso”,
propomos as mesmas ações. |
|
Preconceito de outros sujeitos da Universidade em
relação à formação no curso |
Estreitar
relações entre as demais instâncias da UFES e o curso, com a participação em
atividades acadêmicas, eventos e demais ações que possibilitem maior
conhecimento dos princípios desta Licenciatura. |
Fonte: Do autor (2019).
Salientamos
que as ações de enfrentamento propostas surgiram dos próprios estudantes, de atividades
realizadas pela coordenação do curso e de indicações pensadas mediante análise
dos dados. Isto posto, discutiremos algumas dessas ações em desenvolvimento ou
já realizadas, refletindo o caráter dinâmico desta graduação e o olhar atento
dos envolvidos frente às necessidades da classe camponesa.
O
Desconhecimento dos sujeitos sobre o
curso foi o principal desafio apontado referente aos fatores internos à
Licenciatura em Educação do Campo. Nesta
categoria chama a atenção o fato de que, dos 33 participantes das entrevistas
coletivas, 14 afirmaram não ter conhecimento sobre esta Licenciatura e seus
princípios, 11 relataram ter pouco conhecimento, 7 mostraram conhecer de forma
geral o curso, principalmente a respeito da proposta da Educação do Campo e sua
formação de caráter político e popular vinculada aos movimentos sociais, e 1
discente não respondeu.
Em se tratando das características
deste curso os dados surpreendem, pois, para ingressar os discentes passam por
processo seletivo específico, o que denotaria que a escolha pela Licenciatura
em Educação do Campo ter-se-ia dado por opção política e até mesmo pelo viés da
militância, não havendo espaço para desconhecimento. Contudo, não é o que os
relatos apontam.
Eu cheguei não sabia muito o que era, o que tinha que
fazer, se formar para quê. Aí que veio professor. Eu nunca quis ser professora.
Meu sonho era ser veterinária, agrônoma, qualquer coisa, menos professora. Aí
foi quando passou na minha cabeça em desistir (Daniela).
Eu acredito que o curso está no caminho certo, o ruim
é que as pessoas que não estão no lugar certo no curso, entendeu? Às vezes pode
ter entrado, assim, por uma má informação no edital, entendeu, não ter se
informado direito, aí acaba desistindo ao longo do caminho, e deixando vago
(João).
Frente
a essa realidade, a coordenação iniciou, em 2018, uma discussão sobre a
realização de um momento de diálogo aprofundado com os aprovados no processo
seletivo daquele ano, junto com a pesquisadora e servidores da Secretaria
Integrada que atendem ao curso. Esta etapa, sugerida pelos estudantes, ocorreria
antes da matrícula e possibilitaria que fossem apresentadas e discutidas as
concepções do curso, o perfil do egresso que se busca formar, a organização em alternância,
o calendário acadêmico diferenciado, a vinculação com os movimentos sociais, a
perspectiva crítica e política desta graduação, questões de ordem prática
relacionadas à Secretaria, entre outras temáticas que poderiam surgir.
Com
este diálogo, esperava-se esclarecer as principais dúvidas de forma que fossem
matriculados aqueles que de fato desejassem assumir um compromisso com esta
graduação, considerando o papel que deverão desempenhar não somente enquanto
estudantes da Licenciatura em Educação do Campo, mas, principalmente, como
educadores deste projeto de transformação social, na tentativa de reduzir a
descontinuidade pelo desconhecimento. Todavia, mesmo após vários contatos com a
Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) e sinalizada a necessidade deste encontro,
o planejamento não foi colocado em prática pois o edital de convocação para
matrícula não previu em seu cronograma organização necessária para atender esta
solicitação.
Ainda
assim, em reunião do Colegiado do curso foram traçados novos encaminhamentos
para garantir este espaço, com a solicitação do envio, por e-mail, de um texto
produzido pela coordenação explicando o funcionamento desta graduação e
convidando os aprovados para um momento dialógico no dia da matrícula, em que
seriam colhidas, ainda, informações necessárias para a organização interna da
Secretaria no que diz respeito à hospedagem, alimentação e transporte dos
futuros discentes.
Todavia,
essas informações não chegaram a todos e este momento não ocorreu com o
coletivo, fragilizando as ações sistematizadas. O ocorrido reforça a
necessidade de entendimento da universidade sobre a complexa dinâmica acadêmica
e administrativa deste curso, bem como a importância do alinhamento entre
coordenação e Prograd no que diz respeito à elaboração dos editais de seleção e
matrícula e estabelecimento de cronogramas que dialoguem com a realidade desta
Licenciatura, uma vez que o desconhecimento no momento do ingresso mostrou-se
determinante na descontinuidade dos estudos no curso.
Esta
não foi a primeira vez em que não foi possível realizar este momento junto aos
aprovados, fato que é analisado pelo estudante Bruno.
O problema é que a gente vai sentindo uma expectativa
negativa que o curso vai acabar. Já reduzimos o tamanho das turmas, já reduzimos
o processo seletivo. Então tá uma preocupação que as evasões são muito grandes.
[...] Nós já discutimos aqui na Licenciatura que antes da turma, antes da turma
fazer a matrícula [inaudível], deveria ter uma reunião com os estudantes pra
falar do curso, pra falar o que é o curso. E isso não se conseguiu fazer antes
do processo seletivo, antes da matrícula da turma que está no segundo período.
A gente tem que insistir nesse processo. Apresentar a Licenciatura, seus
problemas, suas dificuldades, suas vantagens, as coisas boas, as coisas, vamos
dizer assim, mais dificultosas. Entrou, já sabe o que que vai encontrar, pelo
menos aparentemente tem uma ideia do que vai encontrar (Bruno).
Em
relação ao desconhecimento docente e à necessidade de fortalecimento do
coletivo de professores do curso, em 2015, foi criado o Grupo de Estudos e
Pesquisas em Educação do Campo do Espírito Santo (Gepeces), com a finalidade de
discutir a Educação do Campo e suas especificidades. Porém, a participação
docente neste grupo não se dava a contento, sendo os participantes em sua
maioria estudantes de pós-graduação que pesquisam a temática.
Além
disso, quinzenalmente, são realizadas reuniões pedagógicas entre coordenação e
docentes, onde são debatidas questões pertinentes ao curso e propostos
encaminhamentos. Por um período ocorreram reuniões que contavam também com a
presença de estudantes e representantes dos movimentos sociais, para que fossem
pensadas as questões pedagógicas desta graduação. Entretanto, parte do corpo docente não
concordava com a participação estudantil em reuniões pedagógicas e poucos
aderiram à proposta. Por isso, essas reuniões passaram a ocorrer apenas entre
os professores. Importante salientar que, assim como no Gepeces, a participação
docente nesses espaços não se dava de forma satisfatória. Somente a partir de
2018, a presença dos professores foi fortalecida, principalmente com o ingresso
de novos docentes, possibilitando um diálogo mais aprofundado.
Da
mesma forma, eventos, apresentações de TCC e outras atividades fomentadas pelo
curso não contam com a presença de parte considerável dos docentes, ausência que
é notada pelos discentes.
E a acolhida por
parte dos professores, não adianta os professores achar, assim, que as turmas
têm que acolher os alunos novos. Sim, das turmas também, mas se os professores
não dão o exemplo não vai à frente. [...] E não é só na hora da entrada, na
aula inaugural, é por todo o momento (Priscila).
[...] quando a UFES está de férias a gente vê poucos
professores prestigiando a apresentação dos TCC’s dos alunos que eles inclusive
ajudaram na formação. E dos estudantes a mesma coisa. Boa parte dos estudantes
não está prestigiando os colegas que estão se formando agora no oitavo período.
Uma coisa gera a outra (Bruno).
Os
destaques refletem a necessidade do fortalecimento deste coletivo para que o
curso se consolide, o que acreditamos que reduziria parte das Tensões e conflitos internos entre
estudantes e professores e, inclusive, as Dificuldades na realização das atividades apresentadas por uma
classe popular cujas especificidades ainda não são totalmente conhecidas e
reconhecidas no Ensino Superior.
Buscar
o reconhecimento da Licenciatura em Educação do Campo junto à universidade, o
poder público e a sociedade em geral tende a minimizar, ainda, as dificuldades
enfrentadas pelos discentes no Trabalho,
principalmente no que tange ao Preconceito
em relação ao curso e seus sujeitos. A
categoria Trabalho, especificamente, surgiu nos questionários
como a segunda principal motivação entre os 74 estudantes que afirmaram já
terem pensado em sair do curso, citada 25 vezes e estando atrás apenas de
fatores relacionados a demandas pessoais. Por esse motivo,
esta categoria aparece como a principal causa para a descontinuidade dos
estudos relacionada a fatores externos ao curso, gerando inclusive desgastes
emocionais, como apontado pelas estudantes Gisele e Alice.
No meu trabalho também é muito estressante, eu tenho
que pagar também as horas, além de levar o atestado, eu tenho que pagar as
horas dos dias que eu fico aqui, trabalhando depois do expediente dia de
sábado. Então, às vezes, é muito cansativo, às vezes dá vontade de desistir
(Gisele).
[...] eu tive uma briga danada com a minha diretora e
falei que ia colocar o meu secretário de Educação na justiça, porque ele falou
que ia cobrar o sábado e o domingo meu, entendeu? (Alice).
Nesse
sentido, a coordenação do curso e a direção do Centro de Educação estão em
constante diálogo com as Secretarias Municipais e Estadual de Educação e com a
Undime, além da realização de visitas às escolas para apresentação desta
Licenciatura.
Uma
das conquistas desses encontros com o poder público foi a inédita inclusão da
possibilidade de contratação de licenciados em Educação do Campo, prevista em
editais de processo seletivo publicados em novembro de 2018, por meio da
inserção de escolas localizadas em assentamentos, escolas que adotam a alternância
e Centros Estaduais Integrados de Educação Rural como áreas de atuação dos
profissionais admitidos. Esses avanços são importantes para o reconhecimento
não apenas do curso, mas da necessidade do olhar diferenciado para o meio rural
brasileiro, e justificam-se em função da demanda latente dos egressos desta
Licenciatura por postos de atuação e, principalmente, nas escolas localizadas
no campo, que necessitam de profissionais com capacitação que atenda aos seus anseios.
Já
a não concretização da Ciranda Infantil foi apontada como um dos entraves à
permanência estudantil segundo a categoria Família.
Nascida nos assentamentos e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), a Ciranda Infantil objetiva pensar a educação das crianças de
0 a 6 anos de forma a possibilitar que mães e pais possam estudar enquanto os
filhos aprendem, socializam e brincam. Segundo o MST, as Cirandas Infantis “são
espaços educativos intencionalmente planejados, nos quais as crianças aprendem,
em movimento, a ocupar o seu lugar na organização de que fazem parte. É muito
mais que espaços físicos, são espaços de trocas, aprendizados e vivências
coletivas” (MST, 2004, p. 25).
Em
um curso composto majoritariamente por mulheres[7], a responsabilidade pelos
filhos reforça as relações de gênero que ainda atribuem a elas o cuidado da
casa e da família, atuando diretamente na condição de permanência destas discentes,
conforme relatos de Geórgia e Wanessa.
Eu, assim, não sei nem se eu posso dizer se eu já
perdi ou tô perdendo o meu casamento, por causa disso também. Lembrando que eu
tenho uma criança especial, que é muito difícil conciliar [...] marido não
entende, é ciúme, é tudo. Igual a Antônia falou, é muito complicado a gente
conciliar. Eu acho que pros homens é mais fácil, porque a gente que é dona de casa, a gente tem que cozinhar, lavar, fazer
tudo, eu dou banho no meu filho, tudo é eu [...] por várias vezes já quase
desisti do curso. Eu tô tentando ficar em pé aí, ficar firme aí, porque tá
difícil (Geórgia, grifo nosso).
A melhoria de uma possível creche mais montada,
entendeu, e sei lá, infraestrutura melhor, pra poder atender melhor essas
crianças. A minha por exemplo tá com seis anos, eu consigo deixar ela com
alguém, eu pago alguém. Mas se a gente já paga alguém, a gente poderia pagar
(Wanessa).
Pensando
nisso, a auto-organização estudantil do curso possui a Comissão de Ciranda, que
busca criar meios para que as crianças levadas para o Tempo-Universidade (TU)
sejam cuidadas de forma responsável e digna. Ou seja, na Licenciatura em
Educação do Campo, essa demanda, a princípio pessoal, é abordada como
responsabilidade de todo o coletivo.
No
TU de janeiro de 2019, por exemplo, foi organizado um espaço com brinquedos e
materiais para práticas pedagógicas das crianças. Naquele momento, o Movimento
Estudantil Kizomba e o Levante Popular da Juventude cederam cirandeiros
voluntários para contribuir com a sistematização do processo, a supervisão e o cuidado
das crianças.
Além
disso, uma docente do curso é responsável por um projeto de extensão destinado à
organização da Ciranda. Entretanto, o diálogo avança lentamente e, até então, as
crianças têm sido recebidas na UFES de forma improvisada nas salas de aula.
Percebemos,
desse modo, que a classe trabalhadora camponesa não separa a vida em âmbito
pessoal, familiar ou laboral, sendo que as diversas dimensões da vida são tratadas
de forma articulada, o que justifica a importância dada à Ciranda Infantil
neste curso. Por isso, torna-se primordial que a universidade e o Centro de
Educação busquem meios para o amadurecimento da Ciranda, ofertando espaços
adequados para receber essas crianças e, com isso, possibilitar que a classe
trabalhadora, em especial a camponesa, prossiga com os estudos.
Além
das ações sinalizadas nos quadros, propomos ainda, três diretrizes que
acreditamos que possam contribuir para a permanência estudantil no curso. A
primeira dispõe sobre a possível alteração no artigo 53 da Resolução n.º
35/2017 do Conselho Universitário da UFES, em que se propõe a inclusão da
palavra “camponeses” junto ao grupo prioritário de estudantes atendidos pelo
Programa Integrado de Bolsas para Estudantes de Graduação, ficando assim
redigido: “na seleção dos bolsistas será dada prioridade aos estudantes pretos,
pardos, indígenas e camponeses (PPIC) ou que possuam renda familiar mensal
de até 1,5 salário mínimo per capita”.
A
segunda proposta surgiu da ausência de projetos destinados
exclusivamente para os estudantes deste curso dentre os Projetos de Ensino e do
Programa Institucional de Apoio Acadêmico desenvolvidos pela Prograd e pela necessidade de
estimular os docentes desta graduação a ofertarem propostas para os sujeitos do
campo. Nesse sentido, sugerimos a inclusão desses projetos na pontuação para a progressão
docente, com pesos diferenciados em função do trabalho extra que demandam, tendo
em vista, a necessidade de serem realizados nas próprias comunidades
camponesas. Esta é uma tentativa de contemplar de maneira articulada as
necessidades discentes e as condições reais de trabalho e tempo dos docentes.
Já
a terceira sugestão trata das exigências previstas para concurso docente, em
que propomos a inclusão em edital de pontuação diferenciada para a apresentação
de plano de trabalho contendo vínculo não somente com ensino, pesquisa e
extensão, mas também com alternância. Dessa forma, busca-se a contratação de
docentes que tenham mais proximidade com as especificidades deste curso, objetivando
reduzir inclusive as solicitações de mudança[8] de área de atuação por
parte dos professores.
Algumas
considerações
Realizar
pesquisa participante enquanto escolha metodológica e política veio ao encontro
da necessidade de apresentação de um produto associado ao estudo desenvolvido, como
um pressuposto fundamental do mestrado profissional. A possibilidade da
transformação por meio da intervenção, aliada ao compromisso social da UFES
enquanto instituição pública de ensino na busca pela permanência e conclusão do
curso pelos estudantes, mostrou-se um importante caminho a ser trilhado
coletivamente com os sujeitos da Educação do Campo.
A
partir da sistematização dos dados emergiram como produto, os quadros 1 e 2, por
meio dos quais percebemos o complexo universo em que estão compreendidos os
desafios da permanência estudantil na Licenciatura em Educação do Campo – campus
Goiabeiras da UFES, cuja teia de fatores articula motivações internas e
externas ao curso.
Os
resultados sinalizaram que a evasão nesta graduação é um fenômeno
multifatorial, assim como ocorre de forma geral no Ensino Superior brasileiro
existindo, contudo, motivações que são específicas às necessidades da classe
camponesa. Ademais, destacamos o desconhecimento das concepções deste curso
como um dos principais desafios, tendo em vista sua influência em quase todas
as categorias.
O
estudo demonstrou, ainda, que a julgar pelos dados produzidos e pelas
tentativas de intervenção frente aos problemas identificados, a universidade
ainda não está preparada para receber a classe trabalhadora, em especial a
camponesa, que possui tempos, vivências, necessidades e perspectivas diferentes.
Considerando
que este é um dos cursos mais novos da UFES, único desta universidade que
associa organização curricular em alternância e formação multidisciplinar por
área de conhecimento, duas peculiaridades para o Ensino Superior, é compreensível
o impacto que esta Licenciatura provoca neste espaço. No entanto, a
universidade precisa rever suas práticas e reinventar-se para atender às
necessidades da classe popular, que atualmente soma mais da metade dos
estudantes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES/FONAPRACE,
2019).
Observamos
que há muita luta a ser feita para enfrentar a evasão neste curso, seja no campus universitário, nos espaços
públicos, nas escolas e, principalmente, com os próprios sujeitos que
participam da construção da Educação do Campo. Espera-se, por fim, que as
diretrizes expostas neste artigo possam fomentar possibilidades de intervenção
e ações transformadoras da realidade aqui problematizada, de forma conjunta com
estudantes, docentes, movimentos sociais do campo e todos aqueles dispostos a
lutar por uma educação pública e de qualidade também para os povos camponeses.
Referências
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Acesso em: 09 abr. 2018.
Recebido em: agosto/2021.
Aprovado em: outubro/2021.
[1] Mestre em Educação, pelo Programa
de Pós-Graduação de Mestrado Profissional em Educação da Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES). Assistente em administração na UFES. Membro do Grupo
de Estudos e Pesquisas Paulo Freire (GEPPF - UFES). E-mail: betagd87@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3873-2605
[2]Doutora em Educação, pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Docente do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), com atuação na Licenciatura em Educação do
Campo e no Programa de Pós-Graduação de Mestrado Profissional em Educação.
Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo do Espírito
Santo (GEPECES) e Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire (GEPPF).
E-mail:
deboramdoamaral@gmail.com
- ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8397-864X
[3] Dados extraídos em fevereiro de
2019.
[4] Segundo a Resolução nº 68/2017 do
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFES, é considerado abandono a
situação em que o discente não efetua matrícula durante um semestre letivo.
[5] Modalidade destinada aos
estudantes que desejam mudar de curso.
[6] A pesquisa foi
aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFES, conforme os pareceres
consubstanciados nº 2.650.976, de 11 de maio de 2018, e 3.295.106, de 30 de
abril de 2019.
[7] De acordo com o
SIE, 75% dos discentes matriculados na época da realização das entrevistas
coletivas eram mulheres.
[8] O Centro de Educação recebeu até
agosto de 2019 dez pedidos de professores que optaram por não fazer parte do
corpo docente da Licenciatura em Educação do Campo, apesar dos editais de
concurso por meio dos quais ingressaram na UFES explicitarem que as vagas se
destinavam a este curso. Destes, 40% solicitaram a mudança entre os anos de 2017
e 2018.