O
lugar dos espaços externos nas diretrizes nacionais para a educação infantil de
0 a 3 anos (1996–2018)
The position of outdoor spaces
in the national guidelines for early childhood education from 0 to 3 years old
(1996-2018)
El lugar de los espacios al
aire libre en las
directrices nacionales para la educación
infantil de 0 a 3 años
(1996-2018)
Simoniely
Lilian Kovalczuk[1]
Ednéia
Regina Rossi[2]
Resumo
O
presente artigo objetivou abordar as prescrições legais federais concernentes à
organização e utilização dos espaços externos das instituições de Educação
Infantil brasileiras, atinentes à faixa
etária de 0 a 3 anos. O recorte temporal de análise foi de
1996 a 2018. As fontes analisadas foram os Referenciais Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil, os Parâmetros
Básicos de Infraestrutura para Instituições de Educação Infantil, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, o estudo propositivo sobre a
organização dos espaços externos das unidades do Proinfância e a Base Nacional Comum
Curricular. Optou-se pelo método de Análise Categorial Temática de Bardin (2010) e pelo diálogo com aportes teóricos
advindos da História Cultural, como Chartier (1991) e
Frago (1995). Utilizou-se, ainda, a literatura especializada sobre o tema dos
espaços da primeira infância, com ênfase nos espaços externos. Foi possível
observar que as prescrições legais buscam sensibilizar os docentes sobre a
importância lúdico-pedagógica das áreas externas, assim como os documentos
federais prescrevem modos de organização e práticas consideradas ideais. O
pátio defendido legalmente é educativo, lugar de práticas desafiadoras,
emancipatórias, interativas, democráticas, baseadas no aprendizado ativo e
sensorial e, especificamente, na livre movimentação dos corpos e do contato com
a natureza. Porém, a literatura recente tem destacado a permanência de
históricas segmentações, que marcam a trajetória das instituições educativas.
Palavras-chave:
História da Educação Infantil; Cultura material e espaços externos; Instituições
de educação infantil: creche; Diretrizes Curriculares Nacionais.
Abstract
This article analyzed the federal legal requirements
concerning the organization and use of outdoor spaces in Brazilian Early
Childhood Education institutions for the 0 to 3-year-old age group. The timeline of analysis was from 1996 to 2018. The
sources examined were the National Curriculum Benchmarks for Early Childhood
Education, the Basic Parameters of Infrastructure for Early Childhood Education
Institutions, the National Curriculum Guidelines for Early Childhood Education,
the study proposing the organization of the outdoor spaces of the Proinfância
units, and the Common National Curricular Base. The Thematic Categorical Analysis method of Bardin (2010) and the
interaction with theoretical contributions from Cultural History, as Chartier (1991) and Frago (1995),
were adopted. In addition, it was used the literature on the theme of early
childhood spaces, emphasizing the outdoor spaces. It was seen that the legal requirements intend to raise teachers'
awareness about the playful and educational relevance of outdoor areas and
provide methods of organization and practices regarded as ideal. The playground advocated by law is educational, a
place for challenging, emancipatory, interactive, democratic practices, based
on active and sensory learning, specifically, on the free movement of bodies
and contact with nature. Recent literature, though, has stressed the
maintenance of historical segmentations that have characterized the path of
educational institutions.
Keywords: History of Early Childhood Education; Material culture and outdoor
spaces; Institutions of early childhood education: Nursery; National Curriculum
Guidelines.
Resumen
Este artículo ha abordado las disposiciones legales
federales sobre la organización y el aprovechamiento de los espacios al aire
libre de las instituciones brasileñas de educación primaria, relativas a las
edades de 0 a 3 años. El periodo de análisis ha sido de 1996 a 2018. Se han
analizado las Normas Curriculares Nacionales para la Educación Primaria, los
Parámetros Básicos de Infraestructura para las Instituciones de Educación Primaria,
las Directrices Curriculares Nacionales para la Educación Primaria, el estudio
propuesto sobre la organización de los espacios al aire libre de las unidades
de Proinfância
y el Base Nacional Curricular Común. Se ha elegido el método de
Análisis Categórico Temático de Bardin (2010) y el
diálogo con las aportaciones teóricas de la Historia Cultural, como Chartier
(1991) y Frago (1995). También se ha recurrido a la
bibliografía específica sobre el tema de los espacios para la primera infancia,
centrándose en los espacios al aire libre. Se ha constatado que las disposiciones legales buscan concienciar a los
maestros sobre la importancia lúdico-pedagógica de los espacios al aire libre,
así como prescribir modos de organización y prácticas consideradas ideales. El patio de recreo legalmente defendido es educativo, un lugar de prácticas
desafiantes, emancipadoras, interactivas y democráticas, basadas en el
aprendizaje activo y sensorial y, en concreto, en el libre movimiento de los
cuerpos y el contacto con la naturaleza. Sin embargo, la literatura reciente ha
destacado la permanencia de las segmentaciones históricas que marcan la
trayectoria de las instituciones educativas.
Palabras clave: Historia de la educación primaria; Cultura material y espacios al aire
libre; Instituciones de educación primaria: guarderías; Directrices
curriculares nacionales.
Introdução
A integração da Educação
Infantil (EI) ao sistema da Educação Básica brasileira é conquista recente em
termos históricos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) N° 9394/96,
ordenamento jurídico integrador, e os documentos curriculares posteriores
passaram a ser balizados pela premissa de que a EI é um direito da criança,
compreendida como “[...]
sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas
cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva” (BRASIL, 2010, p. 12). Identifica-se que, tanto na
literatura afeta à área como no ordenamento legal, a delineação de um perfil
identitário de formação para essa etapa é expressa pela integração entre cuidado
e educação e ancorada em cotidianos pedagógicos orientados pelos eixos
brincadeiras e interação, vivenciados em diferentes espaços da instituição, inclusive
para além dela (BRASIL, 1998a; 1998b; 1998c; 2009; 2018).
Todavia, traduzir esse entendimento formativo às condições práticas das
Instituições de Educação Infantil (IEI), principalmente as que se enquadram na
categoria de creche, desafiam-nas a lidar com legados da cultura material, de
soluções históricas anteriores, para fazer ouvir as especificidades de crianças
de 0 a 3 anos em suas novas demandas de formação.
Quando o
assunto são as instituições de EI, a oferta e a expansão histórica de seu atendimento
estiveram pautadas na estratégia do reaproveitamento de espaços diversos e,
mesmo quando se optava por construir prédios especificamente para a faixa
etária, eram erigidos na mesma perspectiva da escola tradicional (ROSEMBERG, 2003; CAMPOS et al., 2020). A arquitetura
institucional tradicional elegeu espaços fechados em detrimento dos externos e,
embora as salas de aula sejam importantes para o desenvolvimento e também
possam acolher experiências lúdicas, não é possível afirmar que elas contemplem
todas as necessidades e interesses dos bebês e crianças bem pequenas,
historicamente vinculadas ao atendimento em tempo integral (ARAÚJO et al., 2015).
A revisão
de literatura evidenciou poucas pesquisas relativas às orientações legais
federais quanto à organização e ao uso dos espaços externos, sobretudo no
contexto da creche. Optou-se, então, pela sistematização e problematização das
prescrições legais atintes à faixa etária de 0 a 3 anos e destinadas aos
docentes, sob a justificativa que os documentos oficiais são “representações”,
como conceituada por Chartier (1991), e expõem valores consensuais de
determinada cultura, fornecendo subsídio para a consolidação de um cotidiano
específico para as IEIs.
A
condução da análise foi baseada na metodologia de Análise de Conteúdo de Bardin
(2010), privilegiando a técnica categorial temática e operacionalizada no
software de análise ATLAS.ti 8. Em observância às fases da metodologia, realizou-se
a pré-análise, na qual foi estipulado o acesso a documentos publicados pelo Ministério
da Educação, a partir da LDB de 1996, de natureza curricular e de cunho
estritamente ligado aos espaços físicos. A partir desses critérios, foi
composto o seguinte corpus documental: Referenciais
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1998a; 1998b; 1998c), Parâmetros
Básicos de Infraestrutura para a Educação Infantil (2006a;
2006b), Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), estudo
propositivo para a organização dos espaços externos das unidades do Proinfância (BRASIL, 2014) e Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018). Além da análise destes documentos, procedeu-se,
ainda, ao estudo bibliográfico sobre o tema. Os textos selecionados foram
coletados no Catálogo de teses e dissertações da CAPES e nos bancos de dados
SciELO e Google Acadêmico, com base em critérios de inclusão pautados na
temporalidade (2010-2020) e na abordagem da temática dos espaços externos das IEIs.
Após
a leitura dos documentos e da familiarização com os temas mais presentes, foi
realizada a segunda fase da metodologia, baseada na codificação do material.
Para as citações, foram atribuídos códigos, posteriormente agrupados em
categorias temáticas. Tal empreitada consistiu na classificação, na diferenciação
e no reagrupamento conforme os critérios de análise, estabelecendo-se
associações entre elementos. As categorias identificadas e utilizadas foram: “Cultura
material das Instituições de Educação Infantil”, “o lugar dos espaços externos
nas propostas pedagógicas nacionais para a Educação Infantil de 0 a 3 anos”, “a
organização pedagógica nos espaços externos das creches” e “as práticas
pedagógicas nos espaços externos das creches”, que serão analisadas a seguir.
Cultura material das Instituições de Educação
Infantil
Historicamente,
os prédios utilizados para atender a faixa etária de 0 a 3 anos na rede pública
basearam-se na estratégia de aproveitamento e adaptação. Casas, galpões de
igreja, centros comunitários, escolas de Ensino Fundamental adaptadas e até
hospitais foram utilizados sob a justificativa de expandir o atendimento e,
mesmo quando eram projetados para crianças pequenas, seguiam os padrões
tradicionais, com salas fechadas, janelas altas, sem lactários e banheiros nas
salas e outras necessidades características da idade (ROSEMBERG, 2003; CAMPOS et
al., 2020). A integração da EI ao organograma da Educação Básica ampliou os
debates sobre a incompatibilidade entre a estrutura física e as especificidades
da faixa etária. Passou-se a defender a estrutura física como elemento
curricular, recurso educativo a ser organizado e usufruído de modo a oferecer
diferentes oportunidades de interagir e aprender e capaz de refletir as
concepções de educação presentes na instituição (ZABALZA,
1998; HORN, 2004).
Especificamente sobre
os espaços externos, Faria (1998) destacou a necessidade de organizá-los de
forma a propiciar vivências com
água, terra, fogo e ar. Que eles tivessem sombra para os dias quentes e espaços
cobertos para os dias chuvosos. Que fossem agradáveis, acolhedores e
desafiadores, e permitissem tanto a interação entre pares como a livre
movimentação dos corpos. No entanto, a valorização dos espaços externos como
elementos educativos não é uma novidade para crianças maiores de 3 anos, como o
modelo de Jardim de Infância de Froebel (Friedrich Froebel, 1782-1852).
Assim, embora experiências e estudos
demonstrassem a relevância dos espaços externos para a formação das crianças,
esse conhecimento não se configurou numa diretriz para a política de educação pública
dos sistemas de ensino. Como lembra Tiriba (2017), o
século XX foi marcado pela ênfase ao Ensino Fundamental e seu financiamento, o
que levou a ampliação das redes de atendimento municipal para crianças de 0 a 6
anos a aproveitar espaços já existentes. O legado desta prática encontra-se
registrado nos documentos oficiais do período de promulgação da LDB de 1996, os
quais evidenciam o plano secundário relegado aos pátios das escolas infantis. Conforme o Plano Nacional de Educação (2001-2010),
“[...] 70% dos estabelecimentos não têm parque infantil, estando privados da
rica atividade nesses ambientes nada menos que 54% das crianças [...]”, em
muitas instituições, “[...] o espaço externo é restrito e tem que ser dividido
com muitos outros alunos” e, “[...] dada a importância do brinquedo livre,
criativo e grupal nessa faixa etária, esse problema deve merecer atenção
especial na década da educação, sob pena de termos uma educação infantil
descaracterizada” (BRASIL, 2001). E, mesmo em IEI com parques e outros
ambientes externos, pesquisas reportam sua limitada acessibilidade, com uso
semelhante ao recreio no ensino fundamental, comprometendo significativamente o
tempo disponível para a interação e a brincadeira (BATISTA,
1998; FRANCISCO, 2005).
Diante
dessas evidências, em 2009, o Ministério da Educação instituiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), destacando a
necessidade das propostas pedagógicas se articularem pelos eixos interações e
brincadeiras e com base no respeito às necessidades, vontades, aos movimentos e
às culturas infantis e locais (FILIPIM; ROSSI;
RODRIGUES, 2017). Nesse ínterim, foi posto em lei o direito infantil à
livre movimentação de seus corpos, seja em ambientes internos ou externos, já
que por eles passa o “encantamento, o questionamento, a indagação e o
conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à
natureza” (BRASIL, 2009).
Contudo,
se o “desemparedamento” dos bebês e das pequenas crianças ganhou destaque em
documentos oficiais, parcela significativa de pátios de escolas infantis ainda
não possuíam sua função pedagógica desvelada na prática, é o que sugerem
pesquisas publicadas. Relativo à caracterização, demarcam sua organização
empobrecida, com pouca variedade de solos ou elementos da natureza, ausência de
cuidados paisagísticos, brinquedos predominantemente tradicionais, muitas vezes
sem manutenção e que oferecem perigos para as crianças. No que diz respeito à
utilização, relatam usos associados ao tempo livre, ao fortalecimento físico, à
não intencionalidade pedagógica, ao empobrecimento pedagógico e, inclusive,
considerado um espaço interdito na medida em que poderia gerar machucados e
sujeiras. Acrescenta-se, ainda, o fato de serem usados como moeda de troca para
obter o bom comportamento da criança, evidenciando que, não obstante as
limitações pedagógicas acima destacadas, a criança pequena manifesta preferência
pelos espaços externos (RICHTER; VAZ, 2010; FIGUEIRA;
2014; ZANELLI, 2017; SILVA; SANTOS, 2020).
A
persistência desse quadro é preocupante, pois o espaço escolar não é neutro. Escolano (1998) infere que a centralidade dada aos
espaços internos na cultura escolar tradicional favorece o controle, a
hierarquização e a homogeneidade. Em vista disso, ainda que as crianças e os
docentes possuam margem de ação sobre o espaço, esta é influenciada pelos
limites ofertados pela linguagem arquitetônica. Destarte, se as especificidades
de crianças de 0 a 3 anos impõem a efetiva ocupação de todos os espaços da
instituição e para além dos seus muros (BRASIL, 1998a; 1998b; 1998c; 2009;
2018), a requalificação dos pátios é vital para a ampliação das experiências
disponíveis aos infantes enquanto estão nas creches. Posto isso, considera-se que a efetiva ocupação pedagógica das áreas
externas envolve a capacitação e a sensibilização dos docentes, uma vez que possuem
a responsabilidade, como um dos pilares do trabalho docente, de adequar os
planejamentos às prescrições legais.
O lugar dos espaços externos nas propostas pedagógicas nacionais para a
Educação Infantil de 0 a 3 anos
A
análise dos documentos (BRASIL, 1998a; 1998b; 1998c; 2006; 2009; 2014; 2018) demonstrou
consensualidade no discurso de sensibilização para a utilização educativa dos
espaços externos articulado ao princípio do aprendizado das crianças por meio
das interações desenvolvidas no espaço, seja com pares, adultos, natureza ou
com o próprio meio. Dessarte, os documentos associam o usufruto pedagógico das
áreas externas à potencialização das múltiplas dimensões humanas, pois “[...]
as crianças, ao interagirem nesse meio com outros parceiros, aprendem pela
própria interação e imitação. Nesse sentido, podemos afirmar que o espaço
externo, assim como o interno, é promotor das aprendizagens infantis” (BRASIL,
2014, s/p). Dessa forma, não é apenas um cenário onde os processos educativos
ocorrem, mas importante “parceiro pedagógico das práticas cotidianas” (BRASIL,
2006; 2009; 2014). De forma consonante a autores como Zabalza (1998) e Horn
(2004), os documentos federais inferem a possibilidade de verificar, nas formas
de organizar e usufruir dos espaços da instituição, as concepções de infância e
criança, orientadores do trabalho pedagógico institucional. Contrapondo-se ao
princípio de que um lugar que ensina deverá ter prioritariamente as mesas, os
berços, as cadeiras e as crianças que “aprendem passivamente”, os documentos
enfatizam a função das áreas externas como prolongamentos da sala de aula
(BRASIL, 2014).
De acordo
com o discurso oficial, os pátios das escolas do século XXI também precisam
responder a um cenário marcado pela urbanização, a qual retira das crianças, em
seus contextos privados, a possibilidade de frequentarem áreas externas que “propiciem
às crianças a possibilidade de estar ao ar livre, em atividade de movimentação
ampla, tendo seu espaço de convivência, de brincadeira e de exploração
do ambiente enriquecido” (BRASIL, 2006a, p. 10, grifo nosso). Assim, documentos
oficiais declaram que “não podemos prescindir de nenhum espaço que possa
oferecer essas áreas, e especialmente os espaços formais de educação deverão
ocupar tal lacuna” (BRASIL, 2014, s/p grifo nosso). A
partir dessa lógica interpretativa, os espaços externos são considerados
responsáveis por possibilitar, às infâncias urbanizadas, o usufruto de espaços ao
ar livre, nos quais possam se movimentar livremente, interagir com pares e
outros adultos, se relacionar com a natureza, viver práticas libertárias e
desafiadoras e aprender por meio do aprendizado ativo e sensorial, de forma
segura e intermediada.
O pátio pensado legalmente é considerado
lócus privilegiado para o contato das crianças com a natureza, uma vez que os
documentos partem do princípio de que há cuidados paisagísticos garantidores de diferentes
tipos de solo, fauna e flora. A partir disso, está presente no discurso oficial
a defesa por uma pedagogia vivida ao ar livre, cujo trunfo estaria em
reconectar as crianças à natureza, aproveitando os benefícios educativos,
físicos e mentais, e a educação ambiental fomentada por meio da “interação, o
cuidado, a preservação e o conhecimento da biodiversidade e da sustentabilidade
da vida na Terra, assim como o não desperdício dos recursos naturais” (BRASIL,
2009, [art.
9º, X]).
Em síntese, observaram-se dois pontos pelos
quais a (re)organização dos espaços externos é validada. Por um lado, os
documentos enfatizam sua dimensão educativa, por outro, aspectos da
sustentabilidade social, uma vez que seu usufruto pode suplantar carências
relacionais de infâncias brasileiras vividas em grandes centros e periferias
(movimentação ampla e contato com pares e com a natureza). Um potente e seguro
espaço para as crianças experimentarem liberdade, autonomia, desafios,
movimentos, interações e aprendizados com a natureza e experiências de alegria
e bem-estar.
Organização pedagógica nos espaços externos
das creches
O enredo sugerido pelos documentos para a
organização e readequação das áreas externas tem a criança como protagonista na
composição dos espaços físicos da instituição, gerando a necessidade de que
estes fossem dinâmicos, acessíveis e flexíveis (BRASIL, 1998a; 1998b; 1998c;
2006a; 2009; 2014; 2018). Contudo, o papel do professor como organizador é
salientado e orientado a basear-se “na escuta, no diálogo e na observação das necessidades e dos interesses
expressos pelas crianças, transformando-se em objetivos pedagógicos” (BRASIL,
2006a, p. 8-9). O termo “escuta” permeia tanto o aparato normativo pós-LDB
quanto as diversas abordagens pedagógicas, denotando um princípio educacional
almejado no início do século XXI. Destarte, identifica-se uma ruptura com a mentalidade
que a antecedeu, na qual, embora houvesse a preocupação de centrar o
aprendizado na criança, os espaços eram organizados da forma como os adultos
consideravam adequado à infância. A escuta promove um deslocamento na forma de
ensinar, que é a inclusão do outro, no caso das crianças, na definição e nas
escolhas de seus processos formativos.
Os documentos
destacam que as escolhas docentes, orientadas pela parceria com os infantes e
suas famílias, precisam ser intencionais e agregar a diversidade e a
complexidade do sujeito criança, na medida em que “as experiências das
crianças, [...] não são apenas motoras, mas também afetivas, relacionais e
cognitivas” (BRASIL, 2014). Assim, os docentes são aconselhados pelos
documentos oficiais a “valorizar as culturas plurais,
dialogando com a riqueza/diversidade cultural das famílias e da comunidade”
(BRASIL, 2018, p. 37). Ainda, considerar “[...] a pertinência de alguns
parâmetros aqui apontados para comunidades rurais, ribeirinhas, indígenas,
quilombolas ou acampamentos, bem como as condições socioeconômicas do
município” (BRASIL, 2006a, p. 28). Ademais, se
reconhece “a vivência e a expressão das culturas infantis – jogos,
brincadeiras, músicas, histórias – que expressam a especificidade do olhar
infantil” (BRASIL, 2006a, p. 16), que fornece subsídios para que o espaço
transmute para a posição de um lugar habitado, praticado, um território da
infância (FRAGO, 1995). O espaço é considerado um
organismo vivo, mutável e flexível, possuidor de uma dimensão temporal que
acompanha as mudanças vividas pela criança que “pode e deve propor, recriar e
explorar o ambiente, modificando o que foi planejado” (BRASIL,
2006a, p. 7). Esta perspectiva supera o padrão adulto do que seria belo,
limpo e organizado, dando vazão ao universo estético infantil.
No
tocante à operacionalização da organização das áreas externas para crianças de
0 a 3 anos, os documentos sinalizam que quanto menor a criança, mais clara
precisa ser a delimitação dos espaços, em decorrência do risco de elas se desorganizarem
(BRASIL, 2006a; 2014). Assim, instruem considerar “a escala da criança, suas
relações espaciais e sua capacidade de apreensão desse contexto, promovendo a
orientação espaço-temporal, segurança e encorajando as incursões pelas áreas
livres” e só “[...] à medida que a criança vai crescendo, esses ambientes
poderão ir se expandindo, favorecendo a exploração e o desenvolvimento
físico-motor” (BRASIL, 2006a, p. 27). Como exemplos concretos de organização, são
sugeridos “caminhos definidos, tratamento paisagístico, áreas de vivência
coletiva, mobiliário externo compatível com o tamanho das crianças” (BRASIL,
2006a, p. 27), como também ampla diversidade em relação aos tipos de piso, como
terra, grama, areia (BRASIL, 2006a; 2014). A organização proposta visa
construir lugares que agreguem atividades e interesses comuns, como áreas para
jogos tranquilos, brinquedos de manipulação e construção, brincadeiras e jogos
de movimento, parque, jogos imitativos, brincadeiras e jogos de aventura e
imaginação (BRASIL, 2014), organizados de forma flexível e, preferencialmente,
sustentável, como observado na Figura 1:
Figura 1: Sugestões para a organização dos espaços externos das IEIs
brasileiras
Fonte: Brasil (2014).
Para a
organização de espaços externos, como os sugeridos acima, os Parâmetros
Nacionais de Infraestrutura para as Instituições de Educação Infantil (BRASIL,
2006b) definem o mínimo de 20% de espaço livre da área total do terreno
utilizado pela IEI. Observa-se que, embora haja caminhos definidos, verifica-se
um distanciamento entre os ambientes, possivelmente para evitar a sobrecarga e
possibilitar movimentos e explorações mais livres para bebês e crianças
pequenas. Ademais, a estruturação das áreas externas pode ser compreendida como
permanência do princípio de delimitação e ordenamento do modelo institucional
escolar panóptico, analisado por Foucault (1983), e
da racionalidade técnico-científica moderna aplicada à organização dos espaços
e fazeres escolares buscando sua objetividade (ROSSI, 2017).
Os brinquedos
fixos, móveis e os demais materiais sugeridos pelos documentos são acompanhados
da descrição da intencionalidade de suas escolhas. Os ambientes sugeridos pelas
diretrizes nacionais privilegiam práticas que envolvem movimentação ampla, contato
com a natureza, imaginação e fantasia, coadunando com os princípios formativos da
EI, que se articulam por meio de interações e brincadeiras. Tanto na Figura 1
quanto nas demais prescrições legais, verifica-se que a novidade dialoga com a
tradição à medida que, ao mesmo tempo que sugere espaços inovadores — como
casas compondo uma vila, espaço da cozinha, ambiente com madeiras e
ferramentas, castelo com rampa para desafios motores e pula-pula —, mantém a
presença de elementos tradicionais da cultura infantil, como os parques com
balanços e gangorras, cujo inovação está na substituição do ferro e do plástico
por madeira sustentável (BRASIL, 2014).
Além
desses espaços, são destacados os ambientes destinados ao contato com a
natureza e ao fomento do aprendizado ativo e sensorial, como a caixa de areia,
torneiras para o acesso à água, horta, jardim com flores e ervas medicinais. Os
cuidados paisagísticos são tidos como centrais para a IEI de 0 a 3 anos, por
fornecerem diferentes tipos de solo, relevo e, sobretudo, árvores frondosas que
gerem sombra e ampliem a permanência infantil em quantidade e qualidade (BRASIL,
1998a; 1998b; 1998c; 2006a, 2006b; 2010; 2014). Sobre isso, destaca-se que a observância
desses cuidados não é acessória na rotina de escolas infantis, já que promovem
o aprendizado pelo corpo e pela ação infantil. Eles são ainda mais importantes
para os bebês que estão aprendendo a andar e a engatinhar, necessitando de
ambientes sombreados e gramados próximos à sala. Neste ponto, os documentos
nacionais sugerem a otimização dos espaços, integrando o solário dos bebês a um
parque e jardim sensorial, “[...] que desperta curiosidade, leva a experiências
olfativas, sensitivas, sonoras e visuais [...] onde seja muito agradável de
estar, interagir, brincar e fazer descobertas cotidianas” (BRASIL, 2012, p. 116).
Vale
destacar que, embora as orientações dadas pelos documentos oficiais enfatizem a
importância de tais práticas, pesquisas recentes apontam para a pouca
transitoriedade dos bebês pelos espaços das creches. As dificuldades de
locomoção e a rotina permeada de momentos de cuidado parecem motivar (ou legitimar)
cotidianos nos quais os bebês permanecem todo o turno escolar, muitas vezes
integral, entre quatro paredes (ARAÚJO et al., 2015; TIRIBA, 2017). As
dificuldades de apropriação pedagógica dos espaços externos não são especificas
das turmas de bebês, outras pesquisas evidenciam que os pátios da maioria das
IEIs brasileiras conflitam com o exposto legalmente. Nestes, sequer os espaços
tradicionais, como hortas, caixas de areia, brinquedos de parque e jardim,
estão garantidos e integrados às propostas pedagógicas, sendo, muitas vezes,
resumidos a concreto e a brinquedos estragados (FIGUEIRA,
2014; ZANELLI, 2017; TIRIBA, 2017; SILVA; SANTOS, 2020).
Importa
destacar que a simples permanência nos pátios, ainda que estar nesses espaços
não pareça ser “simples” em muitos cotidianos, não garante riqueza de
aprendizados. O brincar de qualidade é alcançado pela
intencionalidade da preparação do ambiente, pela seleção dos brinquedos e
objetos disponibilizados, pelos contextos lúdicos criados. Mesmo nos
momentos conhecidos como brincar livre, o professor precisa estar presente,
documentando, interagindo, refletindo os usos e oferecendo novos suportes para
o aprendizado infantil (BRASIL, 2018). Ambientes com pouca variedade podem
gerar conflitos, machucados, monotonia. Evitar o “corre-corre” está entre as
preocupações dos documentos (BRASIL, 1998b; 1998c), porém, muitas vezes, o
correr é a única possibilidade de ação infantil no espaço externo.
A
importância de agregar pertença e flexibilidade aos pátios também está
vinculada, nos documentos analisados, à predileção pelo uso de brinquedos
móveis, brinquedos da natureza e materiais não estruturados, como as sucatas.
Conforme destacado em passagens oficiais, é importante abastecer as áreas
externas com objetos ou equipamentos soltos, na medida em que permitem às
crianças desenvolver sua tendência natural de fantasiar a partir de brinquedos
que possam ser manipulados, transportados e transformados. Nesse ínterim, os
documentos apontam a necessidade de planejar e incluir “brinquedos para
diferentes faixas etárias, brinquedos que estimulem diferentes usos e atividades.
Os confeccionados com materiais naturais da região costumam ser mais atrativos”
(BRASIL, 2006a, p. 27), devido ao seu potencial de ampliação das apropriações
infantis. Observa-se que o uso de materiais não estruturados não é uma novidade
na EI. A literatura especializada enfatiza que seu uso é antigo nas culturas da
EI, estimulado pela necessidade de reaproveitar espaços e materiais, em face do
limitado orçamento financeiro destinado a esses espaços (ROSEMBERG, 2003).
Assim, identifica-se, nos documentos, que a justificativa para o uso desses
materiais possui uma fundamentação diferente da sinalizada por Rosemberg (2003),
qual seja, a argumentação em torno dos princípios da flexibilidade, potência e
sustentabilidade oferecidos por eles.
Práticas pedagógicas nos espaços externos das
creches
No
tocante às práticas pedagógicas, os documentos legais, sobretudo de
cunho curricular, permitem verificar a presença e a consolidação de conceitos-chave
para o fortalecimento identitário da EI, como cuidado, educação, infâncias,
culturas, interação e brincadeira (BRASIL, 1998a; 1998b; 1998c; 2009; 2018). No
que diz respeito às orientações dos documentos, o Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), de 1998, articula as propostas
pedagógicas de modo mais instrumental por meio de eixos de conteúdos
semelhantes ao ensino fundamental, sendo eles movimento,
identidade e autonomia, conhecimento de mundo, artes visuais, música, linguagem
oral e escrita, natureza/sociedade e matemática. As DCNEIs, de 2009, por
sua vez, consolidam os eixos interações e brincadeiras como elementos
perpassantes de todas as propostas pedagógicas. A BNCC, de 2018, mantém tais
eixos, mas agrega seis direitos infantis (conviver, brincar, explorar,
expressar, participar e conhecer-se) e altera a organização para cinco campos
de conhecimento: o eu, o outro e o nós; escuta, fala, pensamento e imaginação; espaços,
tempos, relações e transformações; traços, sons, cores e formas; e corpo,
gestos e movimentos.
Como
destacam teóricos e documentos curriculares normativos (BRASIL, 1998a; 1998b;
1998c; 2009; 2018; KISHIMOTO, 2010), o brincar é a atividade
principal da criança, portanto, precisa ser integrada ao cotidiano com base em
múltiplos estímulos, em diferentes tempos, espaços e parceiros (adultos,
crianças, ambientes, natureza), de modo a ampliar e diversificar suas
“produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade,
suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas,
sociais e relacionais” (BRASIL, 2018, p. 38). Assim, o brincar da criança, no
contexto da EI, não é algo espontâneo, e a sua criatividade esbarra nas
condições materiais, culturais e nas experiências que lhe são ofertadas. Desse
modo, as práticas pedagógicas propostas pelos docentes precisariam ser
conduzidas de forma intencional e reflexiva, privilegiando práticas corporais,
desafiadoras, democráticas, promotoras de autonomia, baseadas no aprendizado
ativo e sensorial, na livre movimentação dos corpos e na interação entre pares
e com a natureza (BRASIL, 1998a; 1998b; 1998c; 2009; 2018).
Na EI, etapa
marcada pela integralidade do cuidado e da educação, o corpo das crianças ganha
centralidade. Assim, os documentos analisados instruem tomar o corpo em sua
integridade e possibilitar sua movimentação ampla em diversos momentos do
cotidiano, sendo reconhecido na lei o direito “[...] dos deslocamentos e dos
movimentos amplos das crianças nos espaços internos e externos às salas de
referência das turmas e à instituição” (BRASIL, 2010, p.
21). Deste modo, demarcam a importância de planejamentos pedagógicos que
possibilitem às crianças a exploração e a vivência de diferentes movimentos,
gestos, olhares, sons e mímicas, integrados ao espírito lúdico e interativo que
se espera de uma IEI (BRASIL, 2018).
Embora a
dimensão cultural do corpo esteja presente nas orientações, averiguaram-se, em
outros documentos oficiais, passagens que sugerem a permanência da dimensão
instrumental do movimento. Tal análise se faz à medida que são indicadas vivências
nem sempre contextualizadas — com a finalidade de “deslocar-se com destreza
progressiva no espaço ao andar, correr, pular [...]” (BRASIL,
1998c, p. 28) — ou o desenvolvimento de “jogos motores e brincadeiras que
contemplem a progressiva coordenação dos movimentos e o equilíbrio das
crianças” (BRASIL, 1998c, p. 34) e de circuitos de coordenação motora que
contemplem “variados modos de ocupação e uso do espaço com o corpo (tais como
sentar com apoio, rastejar, engatinhar, escorregar, caminhar apoiando-se em
berços, mesas e cordas, saltar, escalar, equilibrar-se, correr, dar cambalhotas”
(BRASIL, 2018, p. 41). Sobre isso, é oportuno destacar que pesquisas apontam
para a existência de cotidianos nos quais nem o uso instrumental do movimento é
contemplado, cujas práticas pedagógicas são ancoradas na segmentação entre
corpo e mente, em que persistem práticas de controle corporal, garantido com
filas, cadeiras dispostas uma atrás da outra, permanência de bebês em berços
por longos períodos, exercícios pré-determinados e a concepção de que o
movimento interfere no aprendizado (SAYÃO, 2008; SILVA;
SANTOS, 2020; GOULART, 2020).
Por outro
lado, os documentos também evidenciam a relevância dos espaços externos como
lugares de interação. Ainda que “a preservação da individualidade ou o
atendimento à necessidade de concentração e isolamento” (BRASIL, 2006a, p. 28)
sejam necessárias, também é considerado importante criar oportunidades para que
as crianças entrem em contato com outros grupos sociais e culturais, para
alargar sua visão de modos de viver, perceber outros hábitos, costumes,
celebrações, narrativas. “[...] Nessas experiências, elas podem ampliar o modo
de perceber a si mesmas e ao outro, valorizar sua identidade, respeitar os
outros e reconhecer as diferenças que nos constituem como seres humanos” (BRASIL,
2018, p. 40), além de receber importantes lições de vivência democrática e
aprender a lidar com diferentes emoções, permitindo “a expressão dos afetos, a
mediação das frustrações, a resolução de conflitos e a regulação das emoções” (BRASIL,
2018, p. 37).
Esse
relacionamento não se limita aos seres humanos e diz respeito à integração com
o mundo natural. A relação entre crianças e natureza, inclusive, é a mais
prescrita nos documentos, principalmente sob a ótica do aprendizado ativo e
sensorial. A defesa pelo interesse “natural” dos bebês e pequenas crianças pela
natureza é antiga em termos históricos e remonta a intelectuais como Rousseau (2004) e Froebel (SAITO,
2019), que viam, na natureza, uma competente educadora. Contudo, para
Tiriba (2017), consultora do MEC, embora haja predisposição natural das
crianças a estarem em contato com a natureza, a afinidade estabelecida com ela
é de cunho cultural e carece de desenvolvimento coletivo. Logo, essa relação
precisa ser construída e fortalecida, e as escolas infantis são defendidas como
espaço privilegiado para tal (BRASIL, 2014).
Nos
documentos oficiais, observou-se que o contato com a natureza nos cotidianos
das IEIs é construído a partir de um duplo enfoque: um instrumental e outro
integrador. A perspectiva instrumental pauta-se nos benefícios gerados pela
natureza aos infantes, sejam eles de ordem educativa, recreativa, relacionais,
físicos e mentais. Defende-se a pedagogia vivida ao ar livre pelo viés do fortalecimento
físico e mental, considerando que estar em contato com ema natureza possibilita
descanso mental e alívio de estresse, podendo, ainda, ser usada, para auxiliar
no tratamento de crianças com déficit de atenção e hiperatividade e fomentar o
aprendizado ativo e sensorial (BRASIL, 1998c; 2014). Tiriba destaca que nuances
dessa abordagem racionalizada podem ser observada no RCNEI, de 1998 (BRASIL,
1998c), em que os elementos da natureza presentes nos espaços externos servem
para a verificação de conteúdos previamente ensinados nas salas, sem
comprometimento com a sua conservação e preservação. A natureza é um “objeto a
ser abordado através de processos mentais, o contato tem importância na medida
em que serve para a construção de noções” (TIRIBA, 2017, p. 78).
Por
outro, passagens oficiais permitem perceber o fortalecimento de visão mais
integrada entre ser humano e natureza, fomentando ações para que as crianças
“desfrutem da vida ao ar livre, aprendam a conhecer o mundo da natureza e
compreendam a repercussão das ações humanas nesse mundo” (BRASIL, 2006a, p. 18).
É introduzida a perspectiva da educação ambiental em prol de práticas
pedagógicas que promovam “a interação, o cuidado, a
preservação e o conhecimento da biodiversidade e da sustentabilidade da vida na
Terra, assim como o não desperdício dos recursos naturais” (BRASIL, 2009
[art. 9º, X]); incentivar ações
como a compostagem, o reaproveitamento da água da chuva, o plantio sem
agrotóxico corroboram a sustentabilidade e preservação ambiental. Destarte,
para além daqueles conteúdos tradicionais que buscam classificar e quantificar
a natureza como produto, a busca é por inserir práticas promotoras do
equilíbrio entre seres humanos e natureza, incorporando novos valores à
educação das crianças de 0 a 3 anos (TIRIBA, 2010; 2017).
Prescrições relativas a esse entendimento estão presentes com maior força nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009), mas também
podem ser observadas nos Parâmetros Básicos de Infraestrutura para a Educação
Infantil (2006a; 2006b) e
na BNCC (2018), por exemplo.
Independentemente
do teor da abordagem, a importância da observância dos cuidados paisagísticos é
consensual entre os documentos. Somente um ambiente enriquecido — com
diferentes tipos de solo (grama, pedregulho, terra e areia), relevos variados,
árvores frondosas com sua sombra e frutos, diferentes tipos de plantas
(naturais, plantadas, ornamentais, medicinais), que ofereçam à criança
situações em que possa “compartilhar, com outras crianças, situações de cuidado
de plantas e animais nos espaços da instituição e fora dela” (BRASIL, 2018, p. 51),
de modo a também ampliar o “[...] conhecimento das cores, das formas, das
texturas, dos cheiros e dos sabores da natureza” (BRASIL, 2006a, p. 33) — pode
contribuir para o aprendizado ativo, concreto, sensorial a que se almeja para
crianças de 0 a 3 anos.
Ademais,
a qualidade paisagística e ambiental é condição sine qua non para a
ampliação do tempo e da qualidade da permanência de bebês e crianças bem
pequenas nas áreas externas. Os documentos analisados parecem intencionar assegurar
a presença de elementos da natureza nos contextos práticos das IEIs
brasileiras. Todavia, importa destacar a necessidade de intervenção humana para
que isso ocorra, na medida em que árvores, plantas, grama e variedade de solos e
relevos frutificam da ação intencional e da destinação de recursos que
viabilizem a existência e a manutenção de tais locais. Não é sem razão que resultados
de pesquisas evidenciam que esta presença da natureza parece não compor um
itinerário comum entre as IEIs brasileiras, mesmo vinte e cinco anos após as
normatizações curriculares sugerirem a sua inserção (TIRIBA, 2017).
Considerações
finais
Este estudo se articulou em torno do
objetivo de analisar as diretrizes federais no que concerne às orientações e
definições para os espaços externos das IEIs, particularmente as que se dedicam
à etapa de 0 a 3 anos, após sua inserção no sistema de educação, por meio da
LDB de 1996. Essa integração foi particularmente relevante para os pátios das
IEIs, à medida que estes espaços, historicamente negligenciados, passaram a
galgar importância tanto nas diretrizes federais quanto na literatura
especializada, ocupando um lugar de destaque na nova cultura material que se
almeja para a EI de 0 a 3 anos. Assim, o pátio que emana das leis é deveras
atrativo e enriquecido, marcado pela constante presença da natureza. Lugar
privilegiado da interação, da ludicidade, do movimento e do contato com a
natureza., permeado por vivências desafiadoras, autônomas, libertárias,
democráticas. Ademais, ocuparia também uma função de sustentabilidade social,
pois poderia oferecer, às infâncias urbanizadas, um ambiente enriquecido para a
exploração infantil — cada vez menos comuns em seus contextos privados —, e de
forma segura, intermediada por profissionais. Seria, então, um espaço intermediário
entre a escola e a “rua”, no qual o lado criança se sobreporia à função de
aluno, logicamente dentro dos limites que se espera de uma instituição formal
de educação.
O processo de adequação ou readequação dos
espaços externos das IEIs têm, no docente, um articulador. Além de possuírem a
responsabilidade — como um dos pilares do trabalho docente — de adequar os
planejamentos às prescrições legais, também lhes é solicitado que se baseiem na
escuta dos interesses e das necessidades infantis. No tocante às prescrições
legais, é proposta uma organização feita com base em diferentes ambientes
temáticos, de modo a privilegiar situações de fantasia e imaginação, movimento
e interação entre os pares e com a natureza e contemplar valores de
sustentabilidade, flexibilidade, pertença e identidade. Todavia, importa
destacar a não superação da abordagem racionalizada na organização dos espaços,
devido à orientação de ocupar e interligar os espaços para evitar que as
crianças se percam neles, o que, por consequência, pode gerar controle sobre
suas apropriações.
A organização anteriormente expressa
corrobora os usos específicos destinados a esses lugares, em sua maioria relacionados
ao movimento corporal e ao contato entre pares e com a natureza, de modo a
explorar o aprendizado ativo, concreto, sensorial e pautado no protagonismo
infantil, especificidades da EI. Neste ponto, destaca-se que a existência de
ambientes externos enriquecidos não garante novos usos. O controle, o apego à
higiene e limpeza, a busca por evitar machucados e a preferência por atividades
tradicionais de escolarização são preocupações que, tradicionalmente, orientam
o trabalho nas creches e carecem ser ressignificadas, para que sejam
possibilitadas, à criança matriculada geralmente em tempo integral, vivências
significativas, dinâmicas e marcadas pela alegria. Assim, considera-se que os
esforços feitos neste artigo, de organizar e problematizar as prescrições
legais destinadas aos docentes, podem contribuir para a renovação da cultura
material e das práticas pedagógicas vivenciadas nos espaços externos das IEIs.
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Recebido
em: julho/2021.
Aprovado
em: Outubro/2021.
[1] Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá – PPG/UEM, na Linha de Pesquisa em História e Historiografia da Educação. Integrante do Grupo de Pesquisa em História da Educação Brasileira, Instituições e Cultura Escolar (HEDUCULTES). Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de Marialva. E-mail: simonielylilian@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0513-3326 Lattes: http://lattes.cnpq.br/2619131280086494.
[2] Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (2003). Líder do Grupo de Pesquisa em História da Educação
Brasileira, Instituições e Cultura Escolar (HEDUCULTES). Pesquisadora
visitante na Universidade de Genebra /Suíça (2019-2020). Atualmente
é membro associado do "Laboratoire de Recherche Innovation, Formation,
Éducation" (LIFE), vinculado à Faculdade de ciências da educação da
Universidade de Genebra/Suíça. E-mail:edneiarossi@uol.com.br ORCID:https://orcid.org/0000-0002-7551-5397 Lattes: http://lattes.cnpq.br/5959151437435278.