Formação
socioemocional: olhares para a docência na educação básica
Social and emotion
training: looking at teaching in elementary education
Formación
socioemocional: mirando a la enseñanza en educación primaria
Ezir
George Silva[1]
Thayanne
Lima da Silva[2]
Resumo
A
partir da década de 1990, iniciou-se um movimento mundial na Educação marcado por
reflexões sobre a escola desejada para o século XXI, trazendo à tona, por meio
de diferentes documentos, a importância de uma perspectiva ampla do
desenvolvimento humano, que incluísse, intencionalmente, aspectos
socioemocionais. Essas reflexões impactaram na elaboração de legislações educacionais
brasileiras, como a Lei de Diretrizes e Bases para Educação Básica (LDB) e,
mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Os achados
apresentados têm como objetivo analisar
os olhares para a formação socioemocional da docência na Educação Básica a
partir da LDB e da BNCC. Em um segundo momento, propõe-se pensar sobre seus
modos de aplicação e viabilidade para a prática docente e sua relação com os
pressupostos que orientam a produção de currículo e seus conteúdos. Por fim,
pretende-se chamar a atenção para a importância da formação humana e seus
desdobramentos para as leituras acerca da relação do socioemocional com o
político e o social. A pesquisa é de caráter documental e toma por base as
legislações que regem a Educação Básica e suas propostas afins. Embora
os aspectos socioemocionais sejam considerados desde a década de 1990 e tenham
sido atualizados de lá para cá, ainda representa um grande desafio para a
Educação pensar em uma formação docente e vivência da prática em um cenário
cada vez mais globalizado, plural, tecnológico e, agora, pandêmico.
Palavras-chave: formação;
socioemocional; docência; educação básica.
Abstract
From
the 1990s onwards, it has began a worldwide movement in Education, marked by
reflections about the desired school for the 21st century, highlighting through
different documents the importance of a broad perspective of human development,
which included intentionally social and emotional aspects. These reflections
influenced brazilian educational laws, such as the Lei de Diretrizes e Bases
para Educação Básica (LDB) and more recently the Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). This study aims to analyze the views on the social and emotional training
of teaching in basic education based on the LDB and the BNCC. In a second step,
it is proposed to think about its modes of application and feasibility for
teaching practice and its relationship with the assumptions that guide the
production of the curriculum and its contents. Also, it is intended to draw
attention to the importance of human formation and its consequences for the
readings about the link between social and emotional with the political and the
social. This paper is document analysis based on the laws that govern basic education
and its related proposals. Although social and emotional aspects have been
considered since the 1990s and have been updated since then, it still represents
a great challenge for Education to think about teacher training and experience
of practice in an increasingly globalized, plural, technological and pandemic scenario.
Keywords: training; social
and emotional learning; teaching; elementary education
Resumen
A partir de la década de 1990 se inició un
movimiento mundial en Educación, marcado por reflexiones sobre la escuela
deseada para el siglo XXI, destacando a través de diferentes documentos la
importancia de una perspectiva amplia del desarrollo humano, que incluyera
intencionalmente aspectos socioemocionales. Estas reflexiones se han visto
afectadas por la redacción de las leyes educativas brasileñas, como la Ley de
Diretrizes e Bases para Educação Básica (LDB) y más recientemente la Base
Nacional Comum Curricular (BNCC). Este estudio tiene como objetivo analizar las
visiones sobre la formación socioemocional de la docencia en educación básica a
partir de la LDB y la BNCC. En un segundo paso, se propone reflexionar sobre
sus modos de aplicación y factibilidad para la práctica docente y su relación
con los supuestos que orientan la producción del currículo y sus contenidos.
Finalmente, se pretende llamar la atención sobre la importancia de la formación
humana y sus consecuencias para las lecturas sobre la relación de lo social y
afectivo con lo político y lo social. La investigación es una análisis
documental de las leyes que rigen la educación básica y sus propuestas
relacionadas. Si bien los aspectos sociales y emocionales se han considerado
desde la década de 1990 y se han actualizado desde entonces, todavía representa
un gran desafío para la Educación pensar en la formación y experiencia de la
práctica docente en un cenario cada vez más globalizado, plural, tecnológico y
pandémico.
Palabras
clave: formación; socioemocional;
profesorado; educación primaria
Introdução
O mundo em que vivemos está cada vez mais complexo
e exigente em suas diferentes áreas de formação, entre tantas, é cada vez mais
consensual a ideia de que a dimensão socioemocional ocupa um lugar fundamental
no conjunto de suas elaborações. Temas como autoconhecimento, resiliência e
cooperação nunca foram tão abordados em diferentes espaços, inclusive na Educação.
Mas, ao mesmo tempo, encontramo-nos rodeados de dúvidas e incertezas sobre como
lidar com esta temática tão importante que ainda carece de evidências no
contexto educativo brasileiro para se consolidar de forma viável e segura.
No âmbito do universo escolar, o diálogo
sobre aspectos socioemocionais começou a ser abordado de forma mais intensa a
partir da década de 1990, quando iniciou-se um movimento mundial marcado por
diálogos que propuseram uma reflexão sobre a escola desejada para o século XXI
(ABED, 2016), tendo como um dos principais marcos a publicação do relatório Educação:
um tesouro a descobrir (DELORS, 2010), que constituiu uma reflexão crítica
sobre a educação desejada e necessária para o século atual, privilegiando
conhecimentos já previstos em uma perspectiva mais ativa de ensino somadas a
habilidades de convivência e desenvolvimento de diferentes potencialidades; e a
publicação do livro de Edgar Morin (2011) sobre aprendizados necessários à
educação do futuro, fundamentados no paradigma da complexidade. Ambos os
documentos retomam e enfatizam a importância do desenvolvimento integral
discente, incluindo aspectos socioemocionais, modificando permanentemente
paradigmas existentes na formação escolar até o final do século XX.
Esses documentos internacionais, dentre
outros fatores, impactaram na elaboração de políticas brasileiras que fossem
capazes de considerar diferentes dimensões do desenvolvimento humano no período
escolar, como a Lei de Diretrizes e Bases para Educação Básica (LDB) e, mais
recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ainda assim, considera-se
um grande desafio para educação pensar em uma formação docente que tenha em sua
base a formação socioemocional de quem educa.
Os educadores são os principais agentes do
processo de formação socioemocional na educação básica. Desta forma, promover o
desenvolvimento desses conhecimentos e habilidades nestes profissionais pode contribuir
com o desenvolvimento de competências socioemocionais em alunos (ALZINA, 2015),
além de auxiliar nos desafios que integram a profissão e a vida desse
profissional (PACHECO; BERROCAL, 2015; MARQUES; TANAKA; FÓZ, 2019).
Ao
levarmos em consideração este contexto, o presente artigo pretende analisar os olhares para a formação
socioemocional da docência na Educação Básica a partir da LDB e da BNCC. Em um
segundo momento, propõe-se pensar sobre seus modos de aplicação e viabilidade
para a prática docente e sua relação com os pressupostos que orientam a
produção de currículo e seus conteúdos. Por fim, pretende-se chamar a atenção
para a importância da formação humana e seus desdobramentos para as leituras
acerca da relação do socioemocional com o político e o social.
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa é de caráter documental,
caracterizada pela indicação de caminhos exploratórios e esclarecimentos de
documentos a fim de produzir novos conhecimentos e outras perspectivas de
compreensão (CECHINEL ET AL, 2016). Os materiais analisados foram a LDB (1996), os PCN’s (BRASIL, 1997; 2000; 2006) e a BNCC
(BRASIL, 2017), isto é, os principais documentos que regem a Educação Básica
brasileira. Eles foram lidos e examinados conforme o objetivo do estudo e os
resultados encontrados, assim como a discussão, encontram-se descritos a
seguir.
Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB): perspectivas da integralidade
Embora as discussões sobre uma educação
efetivamente integral tenham se tornado mais intensas a partir da década de
1990 a nível de legislação, o Brasil já enfatizava em sua Constituição Federal
de 1988, no Artigo 205 (BRASIL, 1988), a educação com foco no pleno desenvolvimento
da pessoa, visando seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.
Dentro de uma perspectiva de formação
integral, um importante elemento surgiu na educação tradicionalmente tecnicista
e pragmática: a extrapolação do aprendizado cognitivo para contemplação de
outros aspectos do desenvolvimento. Esse âmbito formativo foi endossado em
vários trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
publicada em 1996, quando propôs que os conteúdos curriculares da educação
básica deveriam difundir “valores fundamentais ao interesse social, aos
direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem
democrática” (BRASIL, 1996, s.p.). A lei incluía também uma formação que
considerasse atitudes e valores (Idem, 1996, Art. 32); preparação para o
trabalho e cidadania, “de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a
novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores” (Idem, 1996, Art.
35, s.p.); e a formação do educando enquanto pessoa humana, “incluindo a
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico” (Ibidem, 1996, Art. 35, s.p).
Após as proposições da LDB, foram
publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) (BRASIL, 1997),
divulgados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Na base deste documento,
pretendeu-se oferecer recursos para uma reorganização do ensino fundamental, a
fim de auxiliar o professor em sua prática educativa de forma a ser referência
para qualidade da educação em todo o país.
Em sua introdução, ele sugere diretamente
uma mudança de foco em relação aos conteúdos previstos no currículo, passando a
considerá-lo um meio, ao contrário de um fim, para que os discentes pudessem
desenvolver suas capacidades, além de criar e usufruir de bens culturais,
sociais e econômicos. Nele, ficou estabelecido que:
O projeto educacional expresso nos
Parâmetros Curriculares Nacionais demanda uma reflexão sobre a seleção de
conteúdos, como também exige uma ressignificação, em que a noção de conteúdo
escolar se amplia para além de fatos e conceitos, passando a incluir
procedimentos, valores, normas e atitudes. Ao tomar como objeto de aprendizagem
escolar conteúdos de diferentes naturezas, reafirma-se a responsabilidade da
escola com a formação ampla do aluno e a necessidade de intervenções
conscientes e planejadas nessa direção. (BRASIL, 1997, p. 48).
Dessa forma, ele divide os conteúdos em
três categorias: conceituais, relacionados a fatos e princípios;
procedimentais, relacionados a ações ordenadas e intencionais para atingir um
determinado objetivo, partindo do propósito fundamental da educação; e
atitudinais, que dizem respeito a valores, normas e atitudes.
Sobre esta última categoria,
acrescenta-se:
É
sabido que a aprendizagem de valores e atitudes é de natureza complexa e pouco
explorada do ponto de vista pedagógico. Muitas pesquisas apontam para a
importância da informação como fator de transformação de valores e atitudes;
sem dúvida, a informação é necessária, mas não é suficiente. Para a
aprendizagem de atitudes é necessária uma prática constante, coerente e
sistemática, em que valores e atitudes almejados sejam expressos no
relacionamento entre as pessoas e na escolha dos assuntos a serem tratados.
Além das questões de ordem emocional, tem relevância no aprendizado dos
conteúdos atitudinais o fato de cada aluno pertencer a um grupo social, com
seus próprios valores e atitudes. Embora esteja sempre presente nos conteúdos
específicos que são ensinados, os conteúdos atitudinais não têm sido
formalmente reconhecidos como tal. A análise dos
conteúdos, à luz dessa dimensão, exige uma tomada de decisão consciente e
eticamente comprometida, interferindo diretamente no esclarecimento do papel da
escola na formação do cidadão. (BRASIL, 1997, p. 50).
Pode-se observar neste trecho uma
consideração explícita sobre a aprendizagem socioemocional, embora ele ressalte
posteriormente que tanto as categorias procedimentais como atitudinais não
devem ser motivo para uma sobrecarga de conteúdo a ser trabalhado na escola,
nem mesmo devem ser tratados como uma atividade específica. A proposta é que
eles estejam presentes no cotidiano da sala de aula, como já acontece
naturalmente, mas de maneira mais explícita, intencional e consciente.
Ainda nos PCN’s, é abordado que aspectos
emocionais e afetivos são tão relevantes quanto os cognitivos, especialmente em
relação a alunos prejudicados por fracassos escolares ou que não estejam
interessados no que a escola pode oferecer. Ele ainda cita a disponibilidade
emocional dos alunos, dentre outros elementos, como fator essencial para uma
aprendizagem significativa e melhoria da convivência em grupo, e ressalta a
influência afetiva, emocional, cognitiva, física e de relação pessoal como
parte da prática educativa.
Em uma das seções do documento citado, em
que são apontados tópicos sobre didática, foram encontradas também menções a
temas como ansiedade intensa, autoconceito, confiança, clima favorável,
respeito mútuo e questões de ordem afetiva, indicando não apenas a complexidade
da prática docente como também uma perspectiva integral que contempla a
dimensão socioemocional como parte dessa prática.
Em 2000, foi publicada a versão dos PCN’s
para o ensino médio, reiterando a importância de fornecer uma educação que
contribuísse para formação individual da pessoa, desenvolvimento de valores e
competências de forma contextualizada com a sociedade, além de prever o “o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento
da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 2000, p. 10).
O referido documento enfatiza o desafio de
integrar no processo educativo a dimensão cognitiva às demais dimensões, como a
emocional, e estimula uma escola movida pela estética da sensibilidade,
pautada na criatividade, curiosidade, inventividade e afetividade. Um dos
pressupostos pelo qual o ensino médio deveria ser orientado, de acordo com os
PCN’s, é o “reconhecimento de que a aprendizagem mobiliza afetos, emoções e
relações com seus pares, além das cognições e habilidades intelectuais”
(BRASIL, 2000, p. 74).
Em 2006, na mesma direção dos outros
documentos que propuseram orientar a educação no Brasil, a publicação dos
Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2006)
também levou em consideração um desenvolvimento integral que pudesse contemplar
os aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais da criança, além de
pontuar a inviabilidade de dissociar as dimensões cognitivas e afetivas do
processo de interação.
O diálogo sobre a construção de uma
concepção integral da educação que considerasse também a dimensão
socioemocional cresceu durante o início do século XXI, sendo reforçada pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRASIL, 2013), que
enfatiza o respeito aos tempos mentais, socioemocionais, culturais e
identitários dos estudantes como orientador de toda ação pedagógica, e foi
melhor estruturada e sistematizada com a publicação final da Base Nacional
Comum Curricular, em 2017.
Base
Nacional Comum Curricular (BNCC): outros olhares para a formação humana
Em 2017, a BNCC, elaborada em cumprimento
a exigência prevista na LDB (BRASIL, 1996), foi homologada em sua versão final,
com a proposta de, enquanto documento normativo, garantir aprendizagens
essenciais a todos os estudantes do país, bem como seu desenvolvimento integral
por meio de dez competências gerais no decorrer da educação básica. Para além
das críticas em relação a incoerências e inconsistências da BNCC (PERONI;
CAETANO; ARELARO, 2019; SÜSSEKIND, 2019), o documento influencia não apenas a
reorganização e elaboração de novos currículos, como a formação inicial e
continuada dos docentes, elaboração de materiais didáticos, métodos avaliativos
e exames nacionais (BRASIL, 2017; NEIRA; JÚNIOR; ALMEIDA, 2016).
Nela, fica estabelecido que:
A Educação Básica deve visar à
formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a
complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões
reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a
dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e
integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os
como sujeitos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao seu
acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e
diversidades. (BRASIL, 2017, p. 14).
Nessa perspectiva, as aprendizagens propostas
devem contribuir para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências
gerais que contemplam diferentes dimensões do humano, desde a valorização de
elementos culturais e digitais a, novamente, aspectos socioemocionais, como
autoconhecimento, reconhecimento de emoções, empatia, diálogo,
responsabilidade, flexibilidade, resiliência, pensamento crítico e
determinação.
Considerando que mudanças curriculares
influenciam diretamente na formação não apenas de educandos, mas também de
educadores e demais profissionais da educação básica, para além das relações de
poder e interesses (NEIRA; JÚNIOR; ALMEIDA, 2016), considerou-se uma reflexão a
partir do recorte das competências gerais que fazem menção ao aprendizado de
habilidade socioemocionais. São elas:
6. Valorizar a diversidade de
saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências
que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer
escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com
liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
7. Argumentar com base em fatos,
dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias,
pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos,
a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional
e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos
outros e do planeta.
8. Conhecer-se, apreciar-se e
cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana
e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para
lidar com elas.
9. Exercitar a empatia, o diálogo,
a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o
respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da
diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades,
culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente
com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação,
tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos,
sustentáveis e solidários. (BRASIL, 2017, p. 10)
Fica evidente, com a publicação da BNCC
(BRASIL, 2017), a necessidade de considerar aspectos socioemocionais no
processo de formação tanto do educando quanto do educador. Pode-se verificar na
descrição das competências gerais supracitadas, o aprendizado de habilidades
que permitam escolhas alinhadas ao projeto de vida, com liberdade, autonomia,
consciência crítica e responsabilidade; posicionamento ético em relação ao
cuidado de si mesmo e dos outros; cuidado com a saúde física e emocional,
reconhecimento das próprias emoções e dos outros, autocrítica e capacidade de
lidar com elas; empatia, diálogo, resolução de conflitos e cooperação; além de
ações pessoais e coletivas autônomas, com responsabilidade, resiliência e
determinação.
Nessa perspectiva, pode-se verificar um
crescente diálogo sobre a integração de aspectos socioemocionais à formação
humana dentro da educação básica desde a década de 1990. Ao mesmo tempo, também
aumentam questionamentos como: “Quais seriam os principais desafios e
possibilidades para uma formação docente que considere também o aprendizado de
habilidades socioemocionais? Seria possível uma prática docente que contemple
esta temática antes de um aprendizado prévio e introdutório que faça sentido na
própria vida pessoal e profissional do educador? Quais contribuições uma
formação socioemocional docente pode dar aos parâmetros e diretrizes
educacionais brasileiros?”. Estas perguntas orientam as reflexões a seguir, no
âmbito de encontrar caminhos iniciais possíveis para as questões levantadas.
Desafios
e possibilidades para a formação socioemocional docente
A BNCC é considerada um documento
norteador também para elaboração e reorganização de políticas relacionadas a
formação inicial e continuada docente, como a Base Nacional Comum Para a
Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2020), que visa
preparar de forma satisfatória este profissional para o exercício de sua profissão.
Dessa forma, é inevitável não refletirmos sobre os desafios, que se desdobram
também em possibilidades, relacionados a formação de quem educa, neste contexto
específico, referente a aspectos socioemocionais.
Pesquisas na área de educação mostram que programas
de educação socioemocional contribuem para o aprendizado de competências
socioemocionais (WEISSBERG; GOREN; DOMITROVICH; DUSENBURY, 2013; ALZINA, 2015;
MARQUES; PACHECO; BERROCAL, 2015; ARANTES, 2019; MARQUES; TANAKA; FÓZ, 2019) e
promovem uma série de benefícios à vida individual e coletiva, apontando ser
este um caminho promissor para o desenvolvimento socioemocional docente.
A educação socioemocional pode ser
definida como um processo que visa a promoção e desenvolvimento de habilidades
necessárias à vida, baseado no desenvolvimento de competências que envolvem
reconhecer e lidar com as emoções de maneira saudável, estabelecer e manter
relações interpessoais positivas, desenvolver responsabilidade para tomar
decisões e gerenciar situações desafiadoras de forma construtiva e ética (WEISSBERG;
GOREN; DOMITROVICH; DUSENBURY, 2013; CASTILLO-GUALDA ET AL, 2017; DURLAK;
DOMITROVICH; WEISSBERG; GULLOTTA, 2015).
Os programas de educação
socioemocional envolvem o desenvolvimento de habilidades relacionadas a
inteligência emocional e habilidades sociais (CASTILLO-GUALDA ET AL, 2017) e
variam de acordo com a fundamentação e enfoque teórico. São vários os que
buscam o desenvolvimento socioemocional em idade escolar (WEISSBERG; GOREN;
DOMITROVICH; DUSENBURY, 2013; ALZINA, 2015; PACHECO; BERROCAL, 2015; BRACKET ET
AL, 2016), no entanto, formações elaboradas e voltadas exclusivamente para o
docente ainda são escassas (ARANTES, 2019; MARQUES; TANAKA; FÓZ, 2019).
Os educadores constituem os principais
multiplicadores de uma formação socioemocional na educação básica, portanto, aprimorar
e promover o desenvolvimento desses conhecimentos e habilidades neles pode, por
consequência, contribuir com o desenvolvimento de competências socioemocionais
em alunos (ALZINA, 2015), além de auxiliar nos desafios que integram a
profissão e a vida desse profissional (PACHECO; BERROCAL, 2015; MARQUES;
TANAKA; FÓZ, 2019).
Nos últimos anos tem crescido o interesse
pelo desenvolvimento socioemocional do docente, compreendendo que esta área é
fundamental ao seu crescimento (PACHECO E BERROCAL, 2015; PACHECO-SALAZAR,
2017; ALZINA, 2015; ARANTES, 2019; MARQUES; TANAKA; FÓZ, 2019) e ao cumprimento
das legislações que são neste trabalho analisadas. Para além destes interesses,
evidências apontam que a promoção de habilidades socioemocionais neste
profissional pode ser considerada fator de proteção à sua saúde mental em sala
de aula (FREIRE et al, 2012; ANDRADE; FRANCO, 2014; LEWIS, 2016;
PACHECO-SALAZAR, 2017), além de estar relacionada a níveis mais baixos de
atitudes incoerentes e distantes direcionadas aos alunos (PACHECO; BERROCAL,
2015), eficácia para lidar com situações desafiadoras em sala, motivação da
aprendizagem, redução de comportamentos agressivos e condutas consideradas
inapropriadas, além da promoção de um clima emocional positivo em sala de aula
(CASASSUS, 2009; PACHECO; BERROCAL, 2015; ALZINA, 2015; MARQUES; TANAKA; FÓZ,
2019).
Apesar do crescente interesse na área, uma
revisão integrativa de programas de intervenção para aprendizagem
socioemocional do educador encontrou apenas 18 programas ao redor do mundo
voltados exclusivamente para este profissional (MARQUES; TANAKA; FÓZ, 2019), a
maioria dos programas desenvolvidos atualmente tem como foco principal os
alunos.
Para Pacheco e Berrocal (2015), as
habilidades socioemocionais do educador devem ser desenvolvidas no início da
formação universitária e aprimoradas ao longo de formações continuadas. No
entanto, sabemos que as Instituições de Ensino Brasileiras enfrentam desafios diante
das transformações que ocorrem tanto em contextos imediatos como no mundo em
geral (ABED, 2016), especialmente relacionadas aos processos que pretendem
articular as práticas docentes às elaborações de propostas capazes de apontar
para caminhos promissores.
Considerações
finais
Conforme observado nas análises anteriores
dos documentos oficiais que norteiam a Educação brasileira, pôde-se observar
que embora os aspectos socioemocionais sejam considerados desde a década de
1990 e tenham sido atualizados de lá para cá, ainda representa um grande
desafio para a Educação pensar em uma formação docente e vivência da prática em
um cenário cada vez mais globalizado, plural, tecnológico e, agora, pandêmico.
Apesar de a formação socioemocional ser um
caminho eficaz para o desenvolvimento pessoal e profissional docente e
apresente uma série de benefícios comprovados, existem poucos estudos empíricos
na academia brasileira (ARANTES, 2019; MARQUES; TANAKA; FÓZ, 2019) propondo a
elaboração de propostas voltadas ao educador que consigam atender as exigências
tanto dos documentos oficiais, que aqui foram discutidos, como dos desafios da
realidade em que a prática docente tem sido vivenciada.
Diante disto, faz-se necessária a produção de
novas pesquisas e a proposição de intervenções qualificadas que consigam tanto
corresponder aos pressupostos da legislação educacional brasileira, quanto
projetar outros olhares para as especificidades que envolvem a vivência e a
prática do educador em uma perspectiva de cuidado humano deste profissional.
Ademais, considerando tanto o cenário
nacional como outros estudos de nível internacional (SEE LEARNING, 2019;
PACHECO; BERROCAL, 2015) torna-se indispensável uma adequação urgente aos
princípios que orientam as formações inicial e continuada dos docentes que
consigam corresponder às especificidades e desafios da Educação Básica no
Brasil.
Por fim, parece-nos fundamental propor um
conjunto de pesquisas, análises e outras intervenções que justifiquem e
consolidem as contribuições da formação socioemocional para o desenvolvimento
integral dos docentes, visando responder às lacunas da formação inicial,
indicar outras categorias que consigam dialogar com as duras realidades do
nosso tempo e com os desafios do homem no século XXI, viabilizando processos de
formação que sejam humanos e humanizadores dos espaços educativos.
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[1] Professor doutor, Universidade
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Recife, PE, Brasil. E-mail: ezo.silva@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4289-073X
[2] Mestranda,
Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educação, Departamento de
Educação. Campina Grande, PB, Brasil. E-mail: <thayanne.lds@gmail.com>. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7159-3577